Literatura

Outline & Escaleta: o que é? como se alimenta? como fazer?

Quem vem da base anglófona chama de outline, quem parte da base lusófona conhece como escaleta, mas, no fim das contas, estamos falando da estrutura de uma história de ficção. A montagem do quebra-cabeças. Um mapa de como as coisas vão acontecer e, ao mesmo tempo, uma ferramenta importantíssima para quem gosta de planejar as tramas antes de sequer escrever as primeiras linhas.

Tenho uma unidade inteira sobre isso no CONTE, meu curso de redação, mas esse texto não é um ataque de oportunidade (great sucess!). Uma grande amiga que está empacada para publicar o primeiro livro há um tempo, pediu ajuda com o tema e aproveitei o material que enviei para ela para publicar aqui também.

A primeira coisa sobre outline é: não existe apenas um jeito de se fazer.

Você pode começar pelas pontas, ou seja, defina a primeira e a última cena. Fiz assim em Filhos do Fim do Mundo. Não fiz um outline propriamente dito. Com o começo e o final em mente, fui juntando as peças conforme escrevia e, por pura força do hábito de consumo, a história acabou saindo no formato clássico dos três atos. Vale lembrar que lá em 2011, quando escrevi a história, eu não tinha estudado nada de narrativa de forma ativa.

Obviamente, não sabia que esse método tinha nome: bookend. Bookend são aqueles apoios para livros, você coloca um na esquerda (começo) e outro na direita (final), a não ser que você seja o Christopher Nolan; aí você coloca o suporte no meio, de ponta cabeça, quebrado em três partes dentro, de trás pra frente. Importante: esse estilo apenas define o INTERVALO no qual sua história vai acontecer, ou seja, o começo e o final. Todo o resto precisa ser desenvolvido e o próximo parágrafo vai te ajudar nisso.

O outro jeito é o clássico outline estruturado ou aprofundado, que utilizei em Snowglobe e ensinei no CONTE. Basicamente, você escreve um resuminho de cada cena e faz isso até a história terminar. Eu gosto de começar com uma frase, ou nome de capítulo, aí vou imaginando as seguintes. Quando “termino”, volto e vou ampliando essas frases até ter um parágrafo definindo quem está na cena, o que acontece, e quem diz o quê. Tem gente graúda apaixonada por esse estilo e levam anos para desenvolver uma história, ou séries, desse movo. O outline estruturado acaba parecendo uma versão resumida do romance em si, às vezes num idioma e estrutura que só quem criou entende.

Quando uso esse estilo, misturo muito o outline de roteiro de cinema com a ficção literária. Emprestei algumas coisas do Robert McKee, outras do “Save the Cat!”, e outras da Michele Gendelman, minha professora de roteiro na Los Angeles City College. A ideia é, além da ideia da cena, também anotar o estado de espírito das personagens, quem ganha e quem perde, e o que está em jogo (stakes). Para algumas pessoas, isso pode soar restrito e algo que vai tolher a criatividade. Para outras, é um modo de arquitetar tudo e não deixar o desenvolvimento nas mãos do acaso ou da felicidade na hora de escrever.

Bem, para essas pessoas eu digo: o poder do momento da escrita pode e, na maioria das vezes, deve extrapolar qualquer noção pré-determinada do que a cena precisa alcançar. Em outras palavras, o outline é uma referência. Para mim, é um modo de imaginar a história antes de começar a escrever, de evitar gastar algumas semanas de trabalho em algo que não termina bem ou que vai morrer no segundo ato porque a história não tem fôlego suficiente.

Sinceramente, o jeito mais fácil de fazer um outline é o seguinte:

Levar o personagem ou a trama do Ponto A ao Ponto B.

4 Times 'House, M.D.' Was Extremely Problematic — Femestella

Por exemplo, vamos usar a série House como referência (se você não assistiu, tá perdendo tempo; corre lá!).

House precisa fazer um procedimento perigoso e que provavelmente vai causar problemas legais para o hospital (Ponto A). Cuddy precisa autorizar o procedimento para salvar o paciente (Ponto B).

Muita coisa pode acontecer entre esses dois pontos. Paciente #1 pode apresentar outros sintomas, um Paciente #2 pode aparecer com sintomas piores, um dos exames não perigosos mostrou que a doença está matando os dois pacientes, mas ninguém sabe a razão. A mãe da Personagem #1 sequestra a Cameron e força o hospital a fazer o procedimento, ou ela morre. E o House aproveita a confusão para fazer o exame perigoso, salvando, ao mesmo tempo, os dois pacientes e, já que a mãe desesperada se sente aliviada, encerrando o sequestro.

Notou que ele NÃO chegou ao Ponto B? Não totalmente. O objetivo do House é sempre salvar o paciente, resolver o quebra-cabeças. Cuddy era um empecilho no início, mas a situação evoluiu para um lado mais insano e só a insanidade de House resolveu. A lição aqui é: sabendo que a personagem TEM que chegar num determinado ponto te ajuda a pensar nas possibilidades da trama, do que causaria mais tensão (no caso acima) e ajudaria mais ainda a desenvolver as personagens. E, convenhamos, quando o House faz as coisas direitinho? Ele é o campeão da subversão de roteiro clássico. Se não for insano, não é House.

Então, é só repetir. Ponto B => Ponto C, Ponto C => Ponto D, e assim por diante, até o final.

No caso de House, o arco do exemplo rende um episódio inteiro. Por ser uma série, pense que seu livro é uma temporada composta por vários episódios (capítulos) e cada um deles ajuda a construir o arco dramático completo.

Outro estilo é o snowflake, o floquinho de neve. Nenhum floco de neve é igual ao outro e ele cresce, amplia e se desenvolve conforme as condições climáticas, neste caso, as características da sua obra. No método snowflake, você começa com uma frase. Algo assim: “Uma garota brasileira precisa fugir de uma ameaça que controla os céus e destruiu a Humanidade”, que seria uma versão bem resumida de “O Céu de Lilly”. Daí pra frente, você transforma esta frase num parágrafo, o parágrafo numa página, a página em descrições de personagens e, a partir daí, narrativas que envolvam estes personagens, etc. A ideia é só parar quando você tiver expandido tudo que gostaria de abordar na história até o romance estiver totalmente desenvolvido.

Bem, essa é a parte teórica. Vamos para alguns exemplos?


Snowflake – O Céu de Lili, roteiro de cinema

– Uma garota brasileira precisa fugir de uma ameaça que controla os céus e destruiu a Humanidade.

– Lili, uma jovem brasileira, precisa fugir pelo cerrado e evitar uma ameaça que controla os céus e mata qualquer um ousar olhar para cima. Esse inimigo invadiu a Terra e nos subjulgou em pouco tempo. Até onde Lilli sabe, o grupo dela é tudo que restou da Humanidade.

– Lili, uma jovem brasileira, luta para conquistar a confiança da mãe, Tereza, enquanto o grupo de mulheres e crianças refugiadas da guerra que arrasou a Humanidade. A guerra terminou, mas a ameaça continua e qualquer um que ousar olhar para o céu é destruído por uma ameaça marcada por um som apavorante e disparos certeiros. Elas aprenderam a viver do que a natureza ainda oferece e, embora Lili não saiba, o que Tereza mais teme é encontrar outras pessoas, pois dois tipos de pessoas restaram: as sortudas e as dispostas a tudo para continuarem vivas.

– Lili tinha apenas 5 anos quando viu o pai pela última vez. Ele partiu de noite, com amigos e armas, em direção a uma guerra rápida, desesperada e sem chances de vitória. Anos depois, a adolescente Lili e a mãe, Tereza, sobrevivem como podem dentro de grupo de mulheres e crianças que vagam pelo interior do Brasil e seguem uma regra de ouro: nunca olhar para cima. Quem olha, invariavelmente, acaba morto por uma ameaça marcada por sons estridentes e terríveis e uma pontaria perfeita. Em meio a essa eterna jornada, Lili passa os momentos de ócio tentando reconstruir a última noite que viu o pai partir e testemunhou “o céu se partir”. Quando a comida disponível no cerrado começa a ficar escassa, o grupo encontra uma vila abandonada com um único morador, que é violento e armazena uma quantidade enorme de comida. Ele as surpreende, mata uma das mulheres e sequestra outras duas. Disposta a tudo para garantir a sobrevivência da filha, Tereza organiza um resgate com as outras adultas para salvar as amigas e conseguir comida. A operação é bem-sucedida, mas Tereza é ferida mortalmente. Ela ainda consegue passar o bastão da liderança a Lili, mas, em pouco tempo, um novo encontro desmembra o grupo e Lili se vê cuidando de quatro crianças. A situação, e o mundo à volta deles, logo deixa Lili sozinha e ela opta por voltar para casa, onde tudo começou. Ela espera encontrar alguma espécie de recomeço, mas descobre uma mescla de coragem e pânico que a faz ousar olhar para cima. Ela descobre a verdadeira fúria dos drones alienígenas que agora patrulham o planeta e descobre um jeito de evita-los.


Bookend – The Jade Lion, trilogia de fantasia

– Os irmãos Una e Duo acompanham o pai, que vai ocupar o posto de Diplomata do Protetorado de Avassárias em Cerulea, onde fica a estátua do Leão de Jade. Eles são muito próximos e, embora tenham ideias opostas, se complementam, o par perfeito. A comitiva é recebida de braços abertos uma semana antes das festividades dos 800 anos da chegada do ídolo de 450 metros de altura ao local e a formação do Novo Império.

– Depois das batalhas pelo controle do Leão de Jade e desaparecimento do ídolo nas águas da Boca do Segundo Mar – e da segurança, abundância e senso religioso que ele provocada – Duo retorna ao lado das tropas remanescentes – exauridas e famintas –, e encontra Una acima dos portões da Cerulea semidestruída, negando-lhes acesso e condenando-os à própria sorte.


Outline Estruturado – The Jade Lion, trilogia de fantasia

– Uma caravana de médio porte vinda do Protetorado de Avassárias, montada em animais de grande porte que parecem cefalópodes terrestres, avista a face do colosso conhecido como Leão de Jade, a estátua. O transporte mais luxuoso carrega Zero, o novo diplomata na Capital, um cargo importante no nome e inútil na prática, para onde políticos ou nomes em fim de carreira são enviados. Acima do animal, mesmo contra as ordens dos guardas, os gêmeos Una e Duo, filhos de Zero, observam a estrada e a estátua de queixo caído. Eles conversam sobre os planos para o novo lar, sobre as lendas acerca do Leão de Jade, de ser verdade ou não que ele realmente se movia a cada 500 anos e dos poderes que, uma vez incontestes, agora começam a beirar o misticismo.

– A caravana desembarca numa espécie de terminal de transportes antes do portão principal de Cerulea, a capital criada quando o Leão de Jade parou pela última vez, há quase 800 anos. Dali, podem ver a maravilha das cataratas criadas pela chega do Leão, e 2 dos templos erguidos pelos religiosos e pelos regentes do Novo Império. Zero e os filhos são levados por um dignitário da Ordem da Juba, a principal organização religiosa do Leão de Jade, para conhecer a cidade e os aposentos (que já foram limpos e esvaziados depois da morte do diplomata anterior). Una quer conhecer as casernas e o quartel general da Guarda Ceruleana, um sonho dela. Duo quer ver o Leão e embarcar no primeiro transporte disponível para A Boca do Segundo Mar, onde os Sea Wardens mantém a vigília contra monstros marinhos que assoam o continente durante a noite. Durante o Tour, eles conhecem os mecanismos dos “muros móveis” de Cerulea, que permitem a abertura quando, e se, um dia o leão voltar a andar. Eles também percebem como as diferentes arquiteturas de quase um milênio foram se sobrepondo por conta da longa permanência. Os primeiros prédios foram projetados para durar cerca de meio século, mas com 300 anos a mais, adaptações e substituições precisaram ser feitas. Muitos prédios interditados e em reforma são vistos. Eles também veem a Torre de Ébano, o lugar mais misterioso da cidade. Una relembra livros de ficção que leu sobre a torre e seus segredos. Mas logo eles chegam aos aposentos e o passeio termina. Chegar perto do Leão de Jade fica para mais tarde. Os dois queriam ver de perto.

– Longe dali, Pridome, o líder da Ordem da Juba, retorna de uma peregrinação que optou por fazer para reforçar a fé e afastar críticas que o apontavam como um sacerdote meramente burocrático, com um grupo de fiéis e o recém-descoberto amor da vida dele, Obéria. O grupo aproxima-se da Primeiro Estalagem da peregrinação. Primeira para quem vai, última para quem volta. Dali, é possível ver o Leão de Jade e Cerúlea em toda sua majestade. Como todos os centros de peregrinação do Caminho de Jade, a cratera da passagem do Leão deixou uma pequena fonte de águas com poderes de cura. Pridome aproveita as últimas oportunidades de relaxamento e contemplação antes de retornar às responsabilidades como sacerdote e presidir a Cerimônia Anual do Leão de Jade. Ele tem fé que, agora, com Obéria a seu lado, o fardo será menor e a sombra da nomeação puramente política será afastada, afinal, ele acabara de provar sua fé tendo indo mais longe do que qualquer um jamais chegou no Caminho.

– Una sai de fininho dos aposentos da família e corre até o Leão, passando por uma das pontes sobre o círculo de água que envolve a estátua e chega bem perto, mas é interrompida por um dos acólitos da Ordem. Ninguém pode tocar a estátua. Una promete ficar longe e dá um passo para trás, dribla o acólito e se joga na estátua, tocando-a com a mão direita. Ele sente um calor confortável, depois um gelo incômodo. O acólito a retira de lá rapidamente e espera ela se recuperar para uma lição de moral e regras na cidade.

– E por aí vai.


Outline resumido – The Jade Lion, trilogia de fantasia

Os gêmeos veem o Leão de Jade pela primeira vez. [intro]

A caravana chega a Cerulea e o grupo faz um tour, mas ainda não puderam chegar perto do Leão. [Una quer uma coisa, Duo quer outra. Eles já demonstram a personalidade]

Pridome chega com o grupo de fiéis até o Primeiro Posto e confidencia com Obéria sobre suas apreensões e a pressão como Sacerdote Supremo da Ordem da Juba. [Pridome quer deixar os problemas para trás, mas está indo na direção deles. Ele espera que Obéria diga algo que o impeça, mas ela apoia o status quo e ele se satisfaz por ter alguém que o entenda a seu lado]

Una faz de tudo para tocar a estátua. [Una quer realizar um sonho, mas há limites]

Duo também foge, mas segue em direção às docas, onde espera poder pegar um barco para o litoral. [Duo pensa só nele quando tem a oportunidade, ele quer ser livre]


Como disse, há muitas opções. O importante é encontrar uma que case com o seu estilo de organização e desenvolvimento prévio. Ficar tentando se adaptar ao estilo de trabalho do Stephen King, da Mary Robinette Kowal ou da Carol Chiovatto pode não ser a melhor alternativa, afinal, somos pessoas e autores diferentes, com rotinas totalmente diferentes e rituais pré-escrita bastante variáveis. E, o mais importante, cada um está num momento diferente da vida pessoal e profissional, por isso, recomendo que procure suas referências em quem já passou pelo que você está passando, e como a pessoa agiu naquele momento, não depois da fama internacional.

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Fábio M. Barreto

Fábio M. Barreto novelista de ficção, roteirista e diretor de cinema e TV. Atuou como criador de conteúdo multimídia, mentor literário e é escritor premiado e com vários bestsellers na Amazon. Criador do podcast "Gente Que Escreve" e da plataforma EscrevaSuaHistoria.net.
Atualmente, vive em Brasília com a família.

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