O dia mal terminou e já perdi a conta de quantas vidas tirei.

O negrume da noite começa a ocupar todos os espaços ao meu redor e a adrenalina dá os primeiros sinais de enfraquecimento em meu corpo. Nunca imaginei que esse dia chegaria, especialmente depois de tanta matança, mas aqui estou. E, finalmente, algo de estranho bate á minha porta. Não é medo.

Antes fosse.

Mesmo que pudesse fugir, lugar nenhum afastaria meus pensamentos. E o cansaço é muito grande. Sento e olho para o horizonte. Aos poucos, os resquícios de luz desaparecem, algumas estrelas ganham força e a lua reina soberana. Uma noite sem nuvens.

Sem vento.

Estranho.

Descansar é a única opção. A dica para que mente assumir o controle com suas ligações sinápticas velozes, impossíveis de serem traduzidas ou transmitidas, tão rápidas que fica difícil diferenciar pergunta de resposta, referência de imaginação, passado do futuro, real do sonho.

Quem lê Lovecraft sabe do que estou falando. Aliás, é a referência mais próxima que pode explicar toda essa loucura. Informação demais. Demais.

Quando percebo, estou olhando fixamente para algum povo distante e os pensamentos aumentam o volume. Meu corpo só fica quieto, relaxando, recuperando as forças. Os olhos ardem um pouco. A única parte em movimento é o do braço que leva o copo d’água aos lábios. Ele também enche o copo vazio. Os dez litros do galão devem ser suficientes. Foi o único pensamento material no meio de tudo aquilo.

Morte. Onde tudo começou.

Foi inevitável não pensar em Cervantes e seu Dom Quixote vagando pela vastidão da Espanha. Sol na cabeça. Armadura pesada. Algum dinheiro e um escudeiro gordo. Dava para sentir o calor e o cansaço no lombo do cavalo. O que ele pensava quando não praguejava algo para Sancho Pança ou quando o tédio tomava conta dos viajantes?

Duvido que tenha sido a idade que o tenha feito enfrentar os moinhos gigantescos. O Sol talvez. Mas os caminhos da mente o levaram àquele embate histórico antes mesmo dele acontecer. Ele deve ter imaginado dezenas de perigos que ele enfrentaria, incontáveis donzelas que precisariam de resgate e tantas situações que requisitassem seus dons cavalheirescos. E a reação para cada um desses cenários era previamente ensaiada, revisada, imaginada, vislumbrada à exaustão. Até mesmo sonhos, quem sabe.

Na primeira chance. Boom! Gigantes! Carga, Sancho! Infelizmente, nunca saberemos que outros desafios poderiam ter surgido à frente do intrépido e galante guerreiro espanhol. Eternamente guardados em seus sonhos.

Mente inquieta.

Sonhos. Devaneios. Mensagens dos deuses. Provações. Ulisses e sua jornada.

Muito além do homem contra os deuses, existia o homem contra ele mesmo. O medo da morte em meio à tempestade. Desconhecido. Surpreendente. Algo assustador como um gigantesco Caliban pronto para abocanhar os temerários.

Em meio a isso, havia o homem que deveria guiar e encontrar soluções. Ele as buscava na solidão dos pensamentos. Confusos. Impróprios. Incertos. Algo precisava fazer sentido. Uma nuvem com formato familiar, o som das ondas, o ruído do vento.

Um verdadeiro campo de batalha interior. Mental. Era preciso encontrar armas. E lutar.

Eles lutaram.

Eu lutei. E luto. Agora sem nenhum inimigo à espreita.

Assim espero.

Alguns minutos se passam e relembro de pessoas. Lugares. Reações. Feições.

E dos julgamentos. Hipocrisia. Ostentação. Falsidade.

Espelhos? Medos? Um pouco de tudo?

A mente usa sua principal arma e sou inundado por mentiras. De todos os tipos.

Contei algumas. Ouvi outras. Ainda ouço o eco das piores. Imagino o que vem por ai. Algumas se tornam realidade. Tem acontecido ao longo dos anos. Deixam de ser mentiras possíveis, se transformam em realidades terríveis. Muita dor.

Um rosto conhecido. Deveria trazer afeto. Conforto.

Abre a porta para o Mal. Ódio. Ressentimento. Decepção.

Os sonhos voltam como uma montagem de flashback de um filme dos anos 80. Com direito a trilha sonora brega e atuações canastronas. Nem meu sonho teve orçamento suficiente para contratar Harrison Ford para interpretar o papel principal. Esse sempre sou eu.

Continuo a contemplar a noite. Agora um pouco fria.

O foco agora está no que eu fiz. Nem lembrar dos heróis antigos ajuda. Surgem apenas nomes. Batalhas grandiosas. Tudo parece não ter ligação. Conexão. Desconexão. Internet. Maravilhas modernas. Horrores de hoje e de amanhã.

Volto ao campo de batalha de pouco tempo atrás. Os sons retornam com força total. Surround imaginário. Home Theater mental com dublagem em inglês, português e élfico. Busco o conselho do velho cinzento, mas o imagino sentado num canto, balbuciando sozinho. Meio ranzinza. Preocupado.

Sinto os lábios secos. A boca fica um pouco tensa. Mais um belo gole. Água. Nada de cerveja ou hidromel. Nada de hobbits dançantes. Nada de magia ou solução sobrenatural para o problema. Aquelas mortes foram culpa minha, não adianta pedir ajuda.

Não desse tipo.

Penso em sangue. O olhar desvia para minhas mãos.

Limpas. Bem cuidadas. Ágeis.

As roupas também estão intactas.

O sangue mancha a sensibilidade. Sensibilidade insensível.

Matei sem pensar. Duas vezes. Parei para pensar em como fazer. Analisei cada passo. Tudo uma questão de escolha.

Algumas vezes apenas reagi instintivamente. Ação. Reação. Morte no final.

Quem está certo é o médico palhaço. Melhorar a vida é a meta. Salvar a Humanidade. Mas é preciso salvar a si mesmo antes. Tarefa difícil com tantas mentiras. Bem-vindo à caça às bruxas. Preconceitos. Nem laços de família conseguem te salvar do círculo de maldades e egoísmo.

A mente procura razões para a guerra. Motivos surgem. Nenhum é aceito. Nada parece plausível. Começo a lembrar das mortes. Silenciosas. Barulhentas. De todos os tipos. Meu arco descansa ao meu lado. Um lembrete. Foco pode ser a solução.

Procuro pela solução. Não pelo problema. Mas ele continua a surgir, cada vez mais incômodo. E a sensação estranha aumenta.

O relógio apita. Uma hora passou.

A noite continua sem vento. A escuridão reina suprema.

Pela janela vejo a uma luz. Não quero olhar. Preciso encontrar a saída antes da nova batalha. Ou melhor, não quero mais lutar aquela guerra. Exército de um homem só. Engenheiros. Beatles. Nada mais faz sentido.

Começo a imaginar que a resposta está em outro lugar. Talvez encontrar algum aliado? Aquele personagem fundamental de uma partida de RPG que você ainda não encontrou, então não pode avançar?

Pode ser. Continuo a enfrentar tudo de peito aberto. Coragem não falta. Assim como o sangue frio não me impede de matar sem remorso.

A luz da janela pisca e chama minha atenção.

O galão de água está praticamente seco.

A sensação ruim volta com força absurda. A decepção se torna completa.

Ficar sem ação é o que me resta. Todo o esforço se esvai. Só uma razão resta para não desistir. E ter esperança.

Enquanto isso, não resisto. O corpo se levanta e vai em direção da luz.

A tela do computador brilha irresistível.

Os soldados estão prontos. Os adversários o aguardam. Continuar?

Yes.

Pelo menos, por enquanto.

==
por Fábio M. Barreto

Fábio M. Barreto

Fábio M. Barreto novelista de ficção, roteirista e diretor de cinema e TV. Atuou como criador de conteúdo multimídia, mentor literário e é escritor premiado e com vários bestsellers na Amazon. Criador do podcast "Gente Que Escreve" e da plataforma EscrevaSuaHistoria.net.
Atualmente, vive em Brasília com a família.

Recomendado para você

1 Comment

  1. Se em outras oportunidades me surpreendi com os textos da coluna “Literatura”, desta vez fiquei estupefato.
    Fui lendo e imaginando a cena. O guerreiro urbano, século 20, talvez 21, mas seus pensamentos percorrem dois, três, quatro séculos de vida.
    Mas ele é humano, não pode viver tanto assim, ou será que pode?
    Este guerreiro, de pé, quer descansar, mas não pode. Atormentado pelos próprios pensamentos, de nada adianta a noite. Descansar? Não é possível.
    Passa o dia, nasce sol, põe-se o sol.
    E mais uma batalha nos aguarda no próximo nascente.
    Ei… não quero mais lutar! Pensando bem, quero sim. É a única coisa que sei fazer: guerrear.
    Dê-me a espada. Hora de partir.

    Até a próxima viagem pelo mar das palavras, caro Barretão!

Comments are closed.