No segundo dia no novo emprego, Alejandro considerou abandonar tudo e sair correndo, ou meter uma bala na cabeça quando descobriu o que estava realmente fazendo ali.

Os três anos de desemprego bateram o pé contra as duas possibilidades, mas não o impediram de olhar para o guarda que vigiava a operação, arrastar o rifle de assalto dele para a tela de compras do iReality e confirmar a compra. Aquele modelo não estava disponível para o público; a versão menos moderna, e igualmente letal, estava e uma caixa chegaria no quitinete de Alejandro na Rua da Consolação em até 24 horas.

O chiado da porta quebrou o devaneio e afastou as dúvidas temporariamente conforme outro grupo tomava a plataforma com alegria, esperança e sorrisos contagiantes. Alejandro tentou ignorar os rostos, mas o protocolo o obrigava a confirmar se todos estavam dentro dos limites do aparelho. Quando fez isso, encontrou o rosto de um menininho asiático de no máximo 10 anos segurando a mãe com a mão direita e um dinossauro de pelúcia com a esquerda. O garoto sorriu e imitou os sons de um motor espacial conforme transformava o brinquedo, momentaneamente, em espaçonave.

Alejandro desviou o olhar, concentrou-se nos comandos e, quando todos os comandos piscaram em verde, acionou o equipamento. Varetas metálicas ergueram-se e começaram a rodar cada vez mais rápido ao redor do garotinho e todos os integrantes do grupo dele. Em poucos minutos, um campo energético constante envolveu a todos. Alejandro podia vê-los como se o ar à frente dele fosse feito de vidro incandescente.

Então, anéis metálicos abaixo do grupo brilharam com uma luz branca e contínua. Era como olhar direto para um prato cheio de leite com neon. Com um novo comando de Alejandro, a plataforma começou a descer, mergulhando metal, carne e sonhos no portal leitoso. A estrutura mergulhou o suficiente para envolver um adulto com dois metros de altura — ninguém naquele grupo tinha mais que 1,89m — e permaneceu dentro da piscina de luz por cinco minutos.

Quando o cronômetro zerou, Alejandro apertou mais um botão e a plataforma retornou. Instantaneamente, o portal cessou e o aparelho voltou ao ponto de origem como se ninguém, nem garotinho nem dinossauro, sequer estivessem passado por ali minutos atrás.

O próximo grupo chegaria em meia-hora.

Alejandro teria mais uma eternidade para pensar nas palavras da única pessoa que falou com ele antes de subir na plataforma. Na única pessoa que estava com medo. Na única pessoa que, nos pensamentos de Alejandro, tinha razão.

A garota disse adeus. Alejandro acionou os controles e, assim como as outras centenas de pessoas que passaram por ali em poucos dias, ela desapareceu.

Alejandro foi incapaz de ignorar o pedido de ajuda, o terror, a incredulidade de um desfecho trágico.

Na entrevista de emprego no Centro Oeste de Transporte Temporal instalado no prédio verde e coberto por uma estrutura de alumínio retorcido de um antigo estádio de futebol, ele se sentiu honrado em fazer parte do grupo de funcionários que enviaria a maior parte da população ao passado, onde estaríamos à salvo do meteoro que se aproximava — e da destruição certa — e teríamos conhecimento de sobra para tentarmos salvar a raça humana novamente. Aceitar aquele trabalho significava ter uma fortuna quando fosse a vez dele embarcar na plataforma com o último grupo. Significava um novo começo em todos os sentidos.

Foi a melhor oportunidade da vida dele.

Até aquele olhar. Até aquelas palavras. Até os microssegundos do grito dela, antes das varetas começarem a rodar e isolarem tudo e todos numa bolha energética, que ecoavam em looping na cabeça dele. E se ela estivesse certa?

Se ela estivesse certa, Alejandro seria um monstro inepto em sua monstruosidade, afinal, rifles de assalto são péssimas armas para se cometer suicídio.

A voz doce e angustiada voltava ao fim de cada ciclo.

Alejandro tentava impedir, silenciar, esquecer.

A voz voltava mesmo assim.

“Olhe ao seu redor, eles estão nos exterminando. E vão exterminar você. Fomos enganados. Querem os lugares nas espaçonaves só para eles.”

A garota era de origem latina, assim como Alejandro. Ao lado dela, negros, asiáticos, árabes, mestiços, diferentes. Por isso Alejandro tentava ignorar os rostos dos grupos seguintes, não queria confirmar a suspeita. Mas ele olhava. Ele sempre olhava. E ela sempre estava certa.

Se o mundo realmente estava acabando, ele acabaria mais rápido para aquelas pessoas. Pessoas como ele. Pessoas prometidas para o futuro, mas desintegradas pela eletricidade.

Ainda faltavam 10 minutos para a chegada do próximo grupo.

Dez minutos era tudo de que ele precisava. Cada ciclo durava aproximadamente 12 minutos, do primeiro viajante colocar o pé na plataforma até o retorno da placa metálica vazia.

Alejandro sabia como acionar o modo automático. Ele seria o último a ir embora quando a região estivesse totalmente evacuada. Ele veria todos partirem, sempre em dúvida se estaria salvando vidas ou expurgando pessoas descartadas para a verdadeira salvação nas naves que partiriam para o cinturão de asteróides.

Ele havia aceitado um emprego, não aquele peso.

Dez minutos era tudo de que precisava.

Sozinho na câmara, Alejandro acionou o ciclo automático — que, uma vez concluído, desabilitaria a instalação — e correu para o centro da câmara.

“Não vou matar mais ninguém. Não é certo.”

As varetas começaram a girar.

“Se alguém mais tem que morrer, que seja eu e minha culpa. Vou salvar essa gente. Eles vão ter que colocá-los nas naves.”

Com o isolamento eletromagnético completo, Alejandro olhou para baixo e viu a membrana leitosa formando-se ao redor da plataforma. Não havia mais volta. O técnico que deveria fechar a porta e apagar a luz salvaria milhares de pessoas da morte certa.

“Voy cerrar la frontera del tiempo.” E sorriu, com os punhos cerrados, olhos fechados e cabeça inclinada para trás, aproveitando os poucos instantes de glória que lhe restavam.

Então, uma voz distante chacoalhou a consciência de Alejandro.

E se ela estivesse errada?

Alejandro arregalou os olhos e viu apenas o brilho ofuscante envolver a existência.

Fábio M. Barreto

Fábio M. Barreto novelista de ficção, roteirista e diretor de cinema e TV. Atuou como criador de conteúdo multimídia, mentor literário e é escritor premiado e com vários bestsellers na Amazon. Criador do podcast "Gente Que Escreve" e da plataforma EscrevaSuaHistoria.net.
Atualmente, vive em Brasília com a família.

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