Merlin e Morgana brigaram na noite anterior ao início da jornada. E a razão era legítima.

Quem confiaria em Arthur?

Dentro da cabana do mago, Merlin explicou, desenhou, conjurou imagens dos lugares e tarefas envolvidas na jornada até a morada da Dama do Lago e, mesmo assim, Arthur continuava misturando ‘direita da areia movediça’ com ‘pular da ponte quebradiça’. Merlin ficou puto. Vendo a briga, Morgana tentou outras abordagens e, por outras abordagens, entenda tentar de tudo: de enfeitiçar o moleque a considerar fazer uma poção capaz de transmutá-la em Arthur e ir no lugar dele.

Mas Merlin tinha razão. A Dama do Lago veria além do feitiço e não daria em nada. Ela precisava avaliar Arthur, ninguém mais. A espada era dele, assim como havia sido do pai dele, do avô e de tantos outros da linhagem desde a fundação da Bretanha.

Arthur foi o primeiro imbecil a tirar a espada da pedra, dar um faniquito e jogar Excalibur no lago. Ele não queria ser rei. Bom, até aí Merlin queria ser dono de bar e Morgana tinha uma carreira brilhante como engenheira de grande porte — as torres e castelos dela estavam muito à frente de seu tempo. Mas a vida exige sacrifícios e vocações ficam de lado quando é preciso impedir as forças do Mal de dominar a terra.

Só Excalibur poderia fazer isso.

E o moleque mimado jogou a porra da espada no lago.

Agora, não tinha mais jeito, ele precisava ir até lá, agradar a Dama do Lago e recuperar Excalibur.

“Ele vai pular da merda da ponte.”

“Não, não vai, Merlin. Nem ele é tão estúpido assim.”

“Vai sim, Morgana. Quer ver?”

“Arthur?”

“Oi.”

“Como você vai passar pelo Jabberwocky?”

“Jabberwocky, Jabberwocky… vou dar uma cenoura pra ele?”

“Ah, lá! Ele não vai durar uma hora no caminho.” Merlin estava revoltado. “Não, criatura de luz. A cenoura é para a Besta da Caverna de Carbanog. Você tem que mostrar os formulários da vigilância sanitária pro Jabberwocky, ele vai ficar entediado e vai embora.”

“Ah, é.”

“Arthur, meu irmãozinho querido, você não quer ir?”

“Não, Morgana.”

“Mas você tem que ir.”

“Eu quero ficar em paz.”

“Quer ficar em paz? Ficar em… eu vou dar uma na sua cabeça, aí você fica em paz, seu cabeça dura.”

“Calma, Merlin.”

“Calma? Ele não está nem aí.”

“E não tô mesmo. Vocês querem salvar o mundo, eu tô bem.”

Merlin saiu da cabana mordendo o punho e rosnando.

“Quem jogou a espada no lago, Arthur?”

“Eu.”

“Então, quem tem que ir buscar?”

“Eu sei, sou eu, mas eu não quero.”

Morgana pegou a cabeça de Arthur com os dois braços e apontou para um corpo cheio de chagas mortais, um braço arrancado e com o peito carcomido por ácido. “Olha pro Lancelote, Arthur.”

“Não.”

“Abre os olhos, agora. Tô mandando.”

Seja pela a ordem, pelas unhas de Morgana entrando na pele ou pelas duas coisas, Arthur abriu os olhos e viu o corpo destruído do amigo.

“Esse é o destino de tudo mundo se a gente perder a guerra. Arthur. Quer terminar daquele jeito?”

“Não, mas não quero ser o primeiro, pô. Não tô com pressa de morrer.”

“Você tem uma chance de vencer se tiver Excalibur. Se não for lá buscar, o Merlin vai arrebentar com você aqui mesmo. É melhor ir.”

“Ele é um velho maluco.”

“E você é um moleque birrento.”

“Eu tenho 18, caramba.”

“E não vai nem chegar nos 19 se continuar com medinho.”

“Vocês são doidos. Querem que eu mate três monstros, atravesse um pântano de onde ninguém sai, decore sete tipos de respostas para charadas, guardiões de pontes, gnomos tarados e ainda xaveque aquela sereia velha e gorda? Ela parece um sapo boi!”

“Ela-está-com-a-espada.”

“Eu não quero morrer.”

“Eu também não. Olha que eu chamo o Merlin.”

“Então, chama. Ele não tem coragem.”

“Merlin!”

Merlin voltou, dedos entrelaçados, recitando o mantra dos cinco pontos da paz interior e da sabedoria mística dos grandes druidas da clareira da Dagdamor.

“Merlin, ele disse que você não tem coragem de dar uma lição nele.”

“Ah, moleque.” Merlin ignorou o mantra dos cinco pontos da paz interior e da sabedoria mística dos grandes druidas da clareira de Dagdamor, invocou três palavras arcanas e apontou as mãos na direção de Arthur e ele virou um sapo.

“Merlin!”

“O quê? Você pediu.”

“Era pra assustar ele, não pra fazer isso! E agora?”

“Eu vi um lago outro dia, posso soltar ele lá. Aí ele para de me encher.”

“A gente precisa dele.”

Cabisbaixo, Merlin demorou a responder. “Eu sei.”

“Desfaz o feitiço.”

“Tenho mesmo? Olha, tá um silêncio.”

“A jornada dele começa amanhã.”

“Ele vai pular da maldita da ponte!”

“Não vai.”

“Você garante?”

Morgana abriu a boca e nenhum som saiu, então ela cerrou os lábios e deixou os ombros caírem. “Não.”

“Deixa ele assim. Assim ninguém mais pega a espada.”

“Vamos perder a guerra.”

“Com isso aí como rei? Nem vale a pena lutar.”

“E se ele aprendeu a lição dele, Merlin?”

Merlin coçou a barba, fez três plocs com a boca e estalou a língua. “Vamos ver.”

“Arthur, tá me ouvindo? Pula uma vez pra sim e, bem, é. Só pula. Se você não estiver me ouvindo não adianta dar alternativa.”

O sapo pulou.

“Muito bem. Tá gostando de ser sapo, cidadão? Pula uma vez para sim e duas para não.”

Arthur pulou duas vezes.

“Eu virei uma salamandra uma vez. É um horror. A azia constante, credo. Enfim, quer deixar de ser sapo, criança? Mesma coisa pros pulos.”

O sapo pulou uma vez.

“Muito bem. Presta atenção em mim. Tá prestando atenção?”

Um pulo.

“Bom, bom.”

Merlin fez mais um encantamento e o lançou na direção do corpo de Lancelot. O cavaleiro decrépito começou a se contorcer, encolher e mudar de cor até transformar-se num pedregulho. Morgana vomitou.

“Puta que pariu, Merlin.”

“Fica quieta, Morgana. Estou salvando nosso futuro.”

“Mas o Lancelot, eu—”

“Sshhhh.”

Morgana ficou quieta.

“Então, Arthur, meu querido aprendiz. Salvador do reino. Esperança de todas as criancinhas verrugentas e chatas que ainda vão habitar nossa terra. Você quer virar uma pedra?”

Dois pulos desesperados.

“Imaginei. Então, vai fazer o que gente tá pedindo, como a gente tá pedindo e trazer a espada de volta?”

Um salto.

“Tá vendo só, Morgana? Bom senso.”

Merlin fez um novo encantamento e Arthur voltou a ser um jovem loiro de dezoito anos, rosto fino e… olhos de sapo.

“Merlin, os olhos dele.”

“Que tem meus olhos?”

“Depois ele melhora.”

“O que tem nos meus olhos?”

Arthur correu para pegar uma bandeja de prata.

“Arruma, Merlin.”

“Meus olhos, seu velho maluco! Tô parecendo uma perereca gigante.”

“Reclama mais e eu transformo outra parte do seu corpo em uma flor.”

“Merlin!”

“Seu doente!”

“Tá bom, tá bom.” Merlin desfez o resto do feitiço a contragosto. “Pronto. Aprendeu a lição sapinho? Dá um pulinho pra mim.”

Arthur esfregava os olhos com desespero e só se acalmou quando viu o reflexo e Morgana confirmou o estado normal.

“Eu vou pular na sua cova, seu doido.” Arthur avançou para cima de Merlin e o velho tamborilou os dedos no ar. Arthur parou.

“Bom garoto. Então, pela última vez…”

E ele explicou o plano.

Na manhã seguinte, Arthur Pendragon iniciou a jornada mais importante do reino.

*

Arthur não pulou da ponte, deu as cenouras para a Besta, entediou o Jabberwocky, respondeu as charadas e chegou ao destino. O mesmo lago onde, uma semana atrás, ele havia jogado Excalibur por achar que era pesada demais para ele.

“Ó, Dama do Lago. Busco sua sabedoria e perdão.” Ele recitou exatamente como Merlin havia instruído.

A superfície pacífica do lago começou a tremer, circular e, depois alguns instantes, um rodamoinho poderoso apareceu no centro e a Dama do Lago elevou-se das águas turbulentas.

“Quem busca meu perdão?”

“Eu, Arthur Pendragon.”

“Só vejo uma criança displicente.”

“Perdoe-me, ó Dama do Lago. Excalibur deve servir o povo e lutar contra o Mal.” Merlin ficaria orgulhoso.

A Dama do Lago retirou Excalibur das águas e a exibiu para Arthur. “É isso que você busca, Arthur Pendragon?”

“Sim.”

“Você a merece, Arthur Pendragon?”

“Sim.”

“Tem certeza?”

“Sim.”

“Humm. Não.”

A Dama do Lago voltou para dentro do lago, com espada e tudo, e desapareceu.

“Oi? Dama do Lago? Olá? Eu devo esperar? É isso?”

Arthur esperou um pouco. Nada.

Esperou mais um pouco. Ainda nada.

O desespero bateu e ele pulou na água, mergulhando para tentar encontrar a espada. Além dos próprios gritos abafados, só ouviu uma gargalhada distante. Ele tentou enquanto o fôlego durou. Ao final do dia, com o Sol descendo, desistiu e voltou para a cabana.

***

Morgana descarregava a última leva de feitiços contras as forças da escuridão, que cercavam a cabana de Merlin, o último bastião do Bem. Ela conseguiu repelir o ataque. Merlin descansava lá dentro. Morgana entrou e sentou-se à mesa, conseguindo espaço entre os poucos refugiados que evitaram o massacre dos últimos anos.

Merlin acordou pouco depois e sentou-se à frente dela.

“E agora, Merlin?”

Merlin deu de ombros, apoiando o corpo sobre a mesa nova. Dois pedregulhos idênticos sustentavam uma tábua de madeira maciça. Então, abriu um sorriso satisfeito e gesticulou na direção do ar. “O silêncio é uma dádiva.”

Fábio M. Barreto

Fábio M. Barreto novelista de ficção, roteirista e diretor de cinema e TV. Atuou como criador de conteúdo multimídia, mentor literário e é escritor premiado e com vários bestsellers na Amazon. Criador do podcast "Gente Que Escreve" e da plataforma EscrevaSuaHistoria.net.
Atualmente, vive em Brasília com a família.

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2 Comments

  1. Melhor versão do Merlin de todas.
    Que texto gostoso de ler. Muito fluido.
    Médio gosto de diálogos entre aspas. Mas não fiquei muito incomodado.

  2. Muito divertido! Merlin zoeiro, adorei! Leitura gostosa e dialogo inspirado!

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