[Entrevista] Joe Wright: Um Diretor Sincero

Quando o cinema é mais que um meio artístico ou financeiro, sua verdadeira essência aparece. Joe Wright provoca a revisão do significado do cinema e suas funções.

por Fábio M. Barreto, de Los Angeles

Escondido por trás de um discreto chapéu bege, sem grandes características físicas, Joe Wright puxava uma folha de seda e despejava o tabaco enquanto ouvia a primeira pergunta da entrevista exclusiva em Los Angeles, palco de seu primeiro filme norte-americano, O Solista, com Robert Downey Jr. e Jamie Foxx. Disléxico desde a infância, sincero ao assumir seus medos e limitações, Wright – que dirigiu Orgulho e Preconceito, de Jane Austin; e Desejo e Reparação, de Ian McEwan – encarou Los Angeles com a visão de um forasteiro, um marginal dentro de seu próprio mundo, ao contar a poderosa história de amizade e limitações entre o jornalista Steve Lopez (Downey Jr) e o ex-prodígio musical, esquizofrênico e morador de rua Nathaniel Ayers (Jamie Foxx). Dono de um dos estilos visuais mais interessantes do cinema moderno, Wright abre o jogo ao longo dessa entrevista com uma sinceridade incomum para o meio cinematográfico. Acompanhe.

Você acredita no cinema como modificador social e pessoal?
Nunca me perguntaram isso antes (risos). Com certeza, o cinema teve um impacto importante na minha vida. Muita gente é impactada pela literatura, para outras é a música, mas para fim foi o cinema.

Por que?
Primeiro pelo cinema ter me assustado demais. O primeiro filme que eu vi foi Bambi e, literalmente, me escondi atrás do sofá. Depois assisti Contatos Imediatos de Terceiro Grau, com aquela experiência religiosa aterrorizante. Morri de medo de tudo aquilo.

Dois temas muito pesados, certo?
Sim e encarei os alienígenas de Contatos como a “Segunda Vinda” de Cristo, aliás, era a intenção da cena. Algo revelador e belo. Era muito jovem e certamente fui afetado por filmes como esses. Tenho certeza de que uma das razões pelas quais faço filmes é para superar medos. E, provavelmente, seja um efeito dessa experiência inicial com o cinema e meus temores na época.

Medo é um elemento de contraste?
Não, na verdade, escolho filmes de acordo com o que eu posso aprender com eles. Tinha muito medo de nunca ter o que dizer. Conhecia muitos rippies e eles me diziam: “você precisa ter uma mensagem, cara”. (risos) E eu me achava vazio por não saber como fazer isso. Aliás, quem sou eu para dizer qualquer coisa? Porém, compreendi que não haveria mal algum em ter sempre algo para aprender. Esse é o meu objetivo. Nunca aceitei um filme com o intuito de abordar temáticas como medo de abandono, romances perdidos ou redenção. Tudo depende do que eu posso aprender, definitivamente.

E o que você aprendeu com Orgulho e Preconceito, Desejo e Reparação e recentemente com O Solista?
Difícil especificar o que aprendi com cada um deles, mas posso tentar. Pelo ponto de vista prático, Orgulho e Preconceito me ensinou muito sobre a estrutura dos romances ingleses, a carreira de Jane Austen, e uma versão sobre o amor romântico condizente com minha própria crença no assunto. Assim como aprendi um pouco sobre orgulho, e outro pouco sobre preconceito (risos). Já em Desejo e Reparação, sempre fui fascinado com as décadas de 20, 30 e 40. Meu pai nasceu em 1906, então ele tinha minha idade na transição entre 30 e 40. Trabalhar com esse período é uma forma de entendê-lo através dos tempos em que ele viveu, compreender as razões pelas quais essa fase da vida dele foi tão marcante. Claro que, nesse meio tempo, aprender sobre a guerra é inevitável.

Seu pai lutou na guerra?
Não, ele era muito vellho. Pelo menos é o que minha família conta (risos).

E, de quebra, você ainda trabalha com gente como Ian McEwan.
Ele é um dos contadores de história mais fascinantes e espertos que já conheci. Esse contato é fabuloso, pois minha função também é contar histórias. Aprender com um mestre do quilate dele foi uma grande honra. Ficava maravilhado a cada novidade que assimilava.

Mas se considerar um contador de histórias não envolveria contar suas próprias histórias? Embora de forma brilhante, seus filmes têm sido, basicamente, adaptações.
Sou disléxico e ler sempre foi um grande desafio. Seguir essa linha de filmes é o modo que encontrei para me educar literariamente. E isso me leva ao início de nossa conversa, quando falei sobre superar medos. Aliás, sentia pavor, não apenas medo, de literatura. Colocava em cheque minha própria inteligência por conta da dislexia, tinha certeza de que era um estúpido. Muitos professores reforçavam essa crença. Trabalhar com esses gigantes intelectuais é uma ótima matéria de confrontar toda essa insegurança e medo.

O que O Solista te ensinou?
Muita coisa sobre política americana e no modo como eles lidam com a questão da saúde mental e, acima de tudo, sobre a mente. Sou fascinado pelo cérebro, estudei muita coisa a esse respeito. Isso sem contar nas descobertas que fiz acerca da comunidade na Skid Row [trecho do centro de Los Angeles, conhecida por reunir milhares de desabrigados e mendigos].

E houve o benefício de poder inserir a perspectiva externa a tudo isso, não? Afinal, você era tão turista quanto a maioria das pessoas que vai assistir a esse filme ao redor do mundo.
A perspectiva de um forasteiro é muito útil nessa história, pois, a seu modo, tanto Nathaniel [Jamie Foxx] e Steve [Robert Downey Jr] vivem vidas marginais em seu próprio país. Seria impossível realizar esse filme pela perspectiva de um insider, digamos. Pelo menos eu não conseguiria retratar esse aspecto.

Você foi muito arrojado ao inserir uma cena de mais de 2 minutos com cores representando sensações musicais, concorda?
Foi divertidíssimo. Fiz, principalmente, para ver se conseguiria colocar aquela seqüência num filme hollywoodiano (gargalhadas). Queria ver se era possível inserir dois minutos de luz abstrata no meio disso tudo. Havia essa curiosidade para provocar a mente das pessoas. Entretanto, tudo aquilo é fruto de pesquisa em cinestesia [condição clínica que permite a visualização de cores associadas a notas musicais, especialmente música].

Fui compelido a fechar os olhos e apenas sentir a mudança de tonalidade conforme a música evoluía.
Perfeito. Faço exatamente a mesma coisa, pois nossas pálpebras são capazes de captar essas flutuações e também transferem parte da luz par a retina.

E como o estúdio encarou essa tentativa?
Precisei lutar por isso. Fizemos algumas exibições de teste e as pessoas reagiram apaixonadamente a esse estímulo. Claro que, algumas delas estavam apaixonadamente indignadas e outras maravilhadas (risos).

Qual a proporção?
Foi bem dividido, meio a meio. Mas achei importante o fato de ter gerado essa paixão, esse desejo de influenciar no resultado final. Se um filme é capaz de criar esse vínculo, significa que funciona. Gostar ou não é outra discussão.

O que define o ritmo de O Solista: a música ou o roteiro?
Os dois. Mas há um elemento que dita o ritmo ali: o diálogo de Nathaniel. Em Desejo e Reparação quase não há diálogos, então estava muito interessado em fazer um filme com uma quantidade descomunal de palavras. Só que, nesse caso, boa parte do diálogo é desconexo e sem sentido. No fim das contas, as falas de Nathaniel se tornaram apenas mais um elemento na cornucópia sonora do filme.

Curioso como você consegue transformar um elemento como esse em um personagem do filme, assim como você também é capaz de transformar linguagem visual em algo próximo de um diálogo. Como fez muito em Desejo e Reparação e na cena do túnel, no centro de Los Angeles. Qual o segredo? Alguma técnica especial?
Não sei dizer. É algo que acontece. Fico lisonjeado, mas não sei como responder a isso. E sou inglês, então também não sei lidar com elogios (risos).

Mas deveria saber, já que sua assinatura visual é facilmente identificável em seus filmes, e essa seria apenas mais uma faceta dessa assinatura, não? (risos).
Tudo isso tem a ver com o momento em que imagino uma cena, para que ela transmita aquelas emoções da melhor maneira possível. Não paro para pensar em como vou fazer as coisas dentro de um padrão visual, o parâmetro que uso é a capacidade da cena em questão poder me empolgar, ou não. Sou do tipo de sujeito imaginativo e incapaz de descansar enquanto a idéia do momento não estiver em execução.

E durante o desenvolvimento dessas idéias sua equipe entende rapidamente onde você quer chegar ou é necessário um processo de alinhamento e educação para encontrar o correspondente visual ideal?
Essa é uma daquelas coisas que nunca para de mudar. Um processo de constante adaptação. Cada um dos membros da equipe tem seu jeito de responder ao material sugerido e torço muito para não ser tão rígido ao ponto de perder oportunidades criativas, quando e onde elas surgirem, em prol de uma visão imutável.

Foi assim que aquela tomada em plano seqüência da evacuação de Dunkirk aconteceu em Desejo e Reparação, por exemplo?
Aquela cena aconteceu por conta da necessidade, para ser sincero. Tinha um dia para filmar e mil extras estavam à minha disposição na praia. Notei que teríamos um problema de continuidade, pois a maré mudaria o set caso fossemos filmar ao longo do dia. O que me restou foi uma janela de oportunidade de três horas para realizar essa cena gigantesca, com milhares de pessoas e isso sem contar sua importância para o filme em si. Gastei muito tempo pensando nisso e, além de tudo, a cena estava escrita como uma montagem. Entretanto, havia feito algumas cenas com steady cam em Orgulho e Preconceito, assim como em minha última produção para TV [Charles II], então pensei em fazer tudo isso de uma vez. Os extras chegaram às 6 da manhã e conforme foram ficando prontos eram posicionados na praia. A maré foi recuando e mais gente foi posicionada. Quando todos estavam a postos, devidamente ensaiados e orientados, a luz chegou no ponto perfeito e filmamos. Foram três tomadas. E aconteceu. Foi algo muito mais teatral. Quase um acontecimento, não apenas uma filmagem.

Quando algo assim acontece, qual a sensação causada pela certeza de ter conseguido uma ótima cena?
É uma petit mort. Orgasmo e morte ao mesmo tempo.

O cinema comercial atual, especialmente em Hollywood, tem vivido uma relação conturbada com adaptações, problemas de criatividade e a insistência nos remakes, sejam clássicos mundiais ou filmes de sucesso mediano como, por exemplo, terror asiático. Como você encara essa tendência?
Não sou um sujeito esperto o suficiente para esse tipo de pergunta (risos). Sou um sujeito muito prático em termos de pensamento. Costumo me dedicar ao material em minhas mãos, em vez de ficar pensando nas decisões alheias. Então, respondo ao que leio. Nunca encaro minhas escolhas como algo de longo termo para minha carreira, tampouco as tomo de acordo com a indústria num todo. É uma questão de caso a caso, de acordo com o que posso aprender, qual o grau de interesse surgindo em mim e se serei capar de expressar esses sentimentos de forma proveitosa.

Mas o simples fato de que você pode realizar seus filmes fora dessa tendência denota outra linha de pensamento, correto?
Considero muito importante a posição de alguns estúdios e produtores capazes de acreditar em suas próprias idéias. Só assim nasce a confiança necessária para investimento e aposta em cineastas atuantes em outras áreas, que não as necessariamente guiadas pela tendência comercial ou necessidade de mercado. Entretanto, ao mesmo tempo, tendências são importantes, pois elas geram confronto de idéias, diferentes versões para os mesmos temas. Sociais ou não. E isso tem seu lado positivo.

Você é um sujeito confiante dentro do set de filmagens?
Não, fico apavorado lá dentro!

E como lidera equipes gigantes se fica com medo durante as filmagens? (risos)
(risos) Sei o que quero, mas isso não me impede de ficar apavorado! (risos). Por isso é sempre bom ter gente boa trabalhando comigo, pois as mensagens são compreendidas e eu passo menos tempo com medo.

Dois momentos em sua carreira: um de grande medo e outro de grande orgulho.
Tive muito medo ao filmar a cena de amor de Desejo e Reparação na biblioteca, pois sabia que aquele era o ponto chave do filme e precisava ser sincera, apaixonada e honesta, além de carregar muita emoção. Superei esse medo escutando muita música muito alta [hard rock], na verdade, escondi meu temor, mas deu certo (risos). Fiquei muito orgulhoso de filmar o encerramento de O Solista, quando 500 membros da comunidade Skid Row estavam felizes, motivados e orgulhosos por terem feito parte do filme. Eles sabiam da importância de suas conquistas com o filme, todos eles fazem parte do Screen Actors Guild agora, receberam pagamento pelo trabalho e sabem que fizeram por merecer. Isso me deixou extremamente orgulhoso.

Veja o vídeo da seqüência de Dunkirk:

8 comentários em “[Entrevista] Joe Wright: Um Diretor Sincero”

  1. Que fantástico. Sou fã dessas obras. E uma admiração enorme pelo “O solista”, eu fiquei encantada com esse filme. Aquelas tomadas do alto, mostrando dezenas de casas com piscina, depois ele faz a mesma tomada com cubículos de colchonetes amontoados na rua e pessoas deitadas. Dizendo: “Olha é o mesmo lugar”. Ao mesmo tempo ele mistura o som do barulho dos carros com o som do violoncelo. É fascinante.Sou apaixonada por esse filme. Às vezes a gente não vê que o mesmo lugar é palco de várias realidades. Pessoas são moradas de várias almas. Os pobres e necessitados são também os delinquentes e não estimados da sociedade. O morador de rua e portador de problemas mentais também é o músico de um dom magnífico. O jornalista, na sua gana por furos de reportagens, descobre outra pessoa dentro de sí ao se deparar com outra realidade que sempre esteve ao lado dele e ele nunca percebeu. Todo o espaço da tela é aproveitado. O choro contido do Robert Downey Jr.. Teve gente que simplesmente não entendeu. Um dos melhores entre os melhores filmes do ano passado e totalmente ignorado pelas premiações.
    Outra cena, a que o Robert Downey Jr. dorme no colchonete junto o com o Michael J. Fox. que ele olha para aquela realidade perplexo. Eu fico arrepiada só de lembrar.

    O final de desejo e reparação é um dos melhores finais do cinema, e a lição que fica é que você deve levara sua vida dignamente Porque a falta de atitudes dignas e corretas te levarão a um amargo remorso e ressentimento por não ter feito o que era para ser feito.

    Que entrevista fantástica. Parabéns, Fábio. O Joe Wright parece ter ficado impressionado com o nível das suas perguntas. Representando muito bem o Brasil! Adorei!

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  3. Gosto muito de suas entrevistas, vc coloca os entrevistados em posição diferente daquelas que costumamos ver, nos mostrando sempre um pouco mais do lado humano dessas pessoas maravilhosas que trabalham com a sétima arte. Saber que eles tbm se sentem inseguros, conhecer seus medos, descobrir a maneira como eles agem para alcançar seus objetivos faz com que admiremos ainda mais o trabalho deles.

    “O primeiro filme que eu vi foi Bambi e, literalmente, me escondi atrás do sofá.”
    Sempre achei Bambi um “desenho” forte para crianças, a cena onde a mãe do Bambi morre, é dramática, forte, assim como a cena do incêndio…
    Que interessante, saber como Joe Wright se sentia ao assistir Bambi.

    A sensação que vc passa das suas entrevistas, é sempre de um bate papo gostoso com perguntas de alto nível, e acho que é por isso que gosto tanto delas.

    Parabéns Fábio!

  4. Fala Fábio, tudo bem? Nossa, a entrevista está excelente, adorei. Ainda não cheguei a asistir O Solista, mas pretendo alugar em breve. Gosto muito do trabalho de Joe Wright, Orgulho e Preconceito (comprei esses dias) e Desejo e Reparação são dois dos meus filmes favoritos.

    Tem uma cena no começo de Orgulho e Preconceito que gosto muito, quando a câmera entra por dentro da casa, mostra alguns dos personagens, e depois sai para fora. Isso cria uma certa profundidada no cenário.

    Abraço, vou indicar a entrevista para uns amigos.

  5. Uahahahhaa!!! Eu sou um dos amigos para quem o Thiago Paulo indicou a entrevista, simplesmente porque eu amo a sequência de Dunkirk. São um daqueles raros momentos que nos fazem crer que o Cinema é mesmo a Sétima Arte.

    Grande entrevista, meu chapa!

    Abraço!

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