Definitivamente, existe esse tema na minha obra ficcional que possibilita ao personagem atravessar um portal e chegar a outro lugar que, embora semelhante ao nosso, seja totalmente diferente – Neil Gaiman

Entrevistar Neil Gaiman sempre foi um sonho. Livros como Deuses Americanos, Os Filhos de Anansi e o desbunde visual de Stardust, ao lado de Charles Vess, foram alguns dos títulos que marcaram minha vida e carreira, isso sem contar Sandman. Tudo, claro, por conta do jeito como Gaiman consegue retratar o mesmo tema (na maioria dos casos) com vitalidade e maestria. Confesso que quando recebi o email convidando para a junket de lançamento de Coraline fiquei bastante ansioso, afinal, Neil Gaiman estava entre os presentes e, se fosse aprovado, realizaria mais um sonho.

A entrevista aconteceu e fiquei bastante feliz ao conhecer um de meus ídolos. Aquele medo do cara ser um porre era gigantesco e não queria, nunca, frustrar com Gaiman. O resultado do bate-papo está aí embaixo, mas o que foi muito bom foi o modo como o escritor tratou todos os jornalistas, a sinceridade com que tratou o tema e, claro, seu tradicional humor permeando todas as respostas. Muito mais que uma entrevista, foi uma conversa sobre livros, cinema e, claro, Coraline e o Mundo Secreto, filme que Gaiman está altamente empenhado na divulgação, seja por seu Twitter (@neilhimself) ou por suas inúmeras entrevistas em Los Angeles, Nova Iorque e Canadá, e resto do mundo, via telefone.

Foi um momento muito emocionante e profissionalmente positivo, pois estou cansado de entrevistar gente que não tem nada a dizer. Foi um encontro notável e inesquecível, precisava registrar, sem dúvida. Adorei Coraline, cujo livro, infelizmente, não li e até a pequena Ariel (a herdeira do clã) assistiu em 3D e pirou! Ela será apresentada ao livro tão logo aprenda a ler, pode apostar.

Encerrando, Neil Gaiman é o cara. Escreve como poucos hoje em dia, recebeu agradecimento de Alan Moore nas edições mais recentes de Watchmen e conseguiu criar uma obra-prima literária chamada Deuses Americanos. Atores apenas representam, escritores vislumbram novos mundos inteiros e, quando trabalhando direito, são capazes de mudar vidas com suas palavras: Neil Gaiman é um desses. Soberbo.

ENTREVISTA:

Quando você notou essa possibilidade sempre explorar novos mundos e jornadas de auto-descobrimento presentes em seus livros?
Não tenho a menor idéia. Essa é provavelmente uma daquelas coisas que acontecem quando você imagina estar fazendo algo totalmente diferente e empolgante a cada novo livro, mas quando se colocam todos os livros em ordem cai a ficha ‘olha fiz tudo relacionado, veja só’. E eles se parecem. Definitivamente, existe esse tema na minha obra ficcional que possibilita ao personagem atravessar um portal e chegar a outro lugar que, embora semelhante ao nosso, seja totalmente diferente.

É algum tipo de “síndrome de Alice no País das Maravilhas”?
Pode ser, pois Alice no País das Maravilhas foi um livro que li, reli e reli tantas vezes que ele, provavelmente, foi gravado no meu DNA antes de me tornar escritor.

Imaginar que Coraline seja um título capaz de ter esse efeito de longo prazo nas crianças? Ser algo formador como Alice foi no seu caso?
A coisa mais esquisita sobre Coraline é que ele foi publicado há sete anos. E sete anos é tempo demais para parâmetros infantis. Muita gente que leu por volta dos 11 anos de idade vem falar comigo agora e as experiências são fantásticas. Coraline foi realmente um livro seminal para algumas gerações. É uma sensação estranha encarar tudo isso e eles acham que eu seria muito mais velho do que sou, me sinto culpado por não parecer um bom velhinho (risos). Aliás, são essas pessoas que estão ansiosas pela estréia do filme e pensando: “é bom terem feito direito ou alguém vai morrer!” (gargalhadas).

E a escolha de Henry Selick para dirigir? Deu certo?
Acho que ele mandou muito bem. Ele leva isso muito a sério.

Você tem que dizer isso obrigatoriamente, confessa!
Humm, acho que o contrato desse não me obriga a elogiar não. Por exemplo, o contrato de A Lenda de Beowulf me proíbe terminantemente de dizer nada ruim ou maldoso sobre o filme até o fim dos meus dias (risos). Aliás, o negócio de Beowulf é o seguinte: vai ser muito interessante ver onde os filmes de motion capture vão chegar daqui dez anos, pois nada do que eles conseguirem seria possível sem esse filme. O que me impressionou nesse projeto foi o fato de terem gastado US$ 160 milhões num longa-metragem 3D para adultos, sem nenhuma tentativa de atrair crianças. Há toda a discussão sobre ter funcionado ou não, mas como roteirista tinha minhas dúvidas sobre a capacidade daqueles rostos transmitirem as emoções necessárias para funcionar bem e perdemos muito ali. Como romancista, escrevo o que as pessoas vão imaginar. Sou como o cara que constrói a casa e mostra para você, leitor. Agora, como roteirista, faço uma espécie de planta baixa e mando as especificações. Dois anos depois me chamam para ver e acabo comentando coisas do tipo: ‘humm, notei que vocês colocaram o banheiro no meio da cozinha’ e alguém responde ‘pois é, ninguém nunca tinha feito isso antes, por isso achamos legal fazer, não é bacana?’; ou então, ‘e essa cor púrpura no lugar o branco, também mudou’, e a resposta ‘sabe a namorada do produtor? ela tem certeza de que essa cor vai ficar melhor’ (gargalhadas).

E quanto a Stardust?

Esse eu também posso dizer o que quiser. E gostei. O que acho mais interessante sobre Stardust é que daqui uns 20 anos, alguém pode querer refilmar e fazer algo totalmente diferente da visão que foi para os cinemas e, mesmo assim, ser tão interessante e dentro da proposta do livro. Sempre soube que o filme ficaria daquela maneira, pois a escolha do diretor define o tipo de filme que podemos esperar. Matthew Vaughn nunca faria algo à la Tarantino, Steven Spielberg ou Tim Burton, seria algo dentro do estilo dele. E foi o que aconteceu com Coraline. Terminei o primeiro tratamento e, mesmo faltando algumas páginas, pedi ao meu agente que enviasse a cópia para Henry Selick. Adorei O Estranho Mundo do Jack, sou um dos três seres humanos no mundo que notou que, embora o nome de Tim Burton esteja no título (Tim Burton’s Nightmare Before Christmas), o filme tenha sido dirigido por ele e não pelo Burton (risos) e pelo fato de ter levado meus filhos para assistir James e o Pêssego Gigante. Pensei: ‘há algo interessante sobre esse cara’.

E o que é esse ‘algo interessante’?
Especialmente no tocante à animação stop-motion, toda a atenção aos detalhes e a disposição de seguir a história de acordo com o necessário. Foi um processo muito longo para nós dois, por exemplo, quando o livro foi publicado em junho de 2002, fiz uma leitura completa em São Francisco e quando acabei de ler, três horas e meia mais tarde, tinha gente gritando ‘leia de novo! Leia de novo!’ (risos). Henry estava lá, ele acompanhou todo o processo de Coraline. Houve um momento em que os direitos do livro expiraram e fiz o que ninguém recomenda – e fui até contra a norma da escola de escritores – e permiti a renovação gratuita. Queria que ele fizesse.

Então havia realmente um objetivo nisso tudo. Qual a razão?

O principal motivo é que ele não tem medo do escuro (risos). Ele entende que ter medo do que existe no escuro pode ser uma coisa boa. Vou dar um exemplo. Já assistiu ao Disney Channel? Então, não acontece nada lá. Sempre há alguém triste, pois, aparentemente, um personagem não foi convidado para a festa, ou pensa que não foi. E aí você se vê no meio de uma história em que todo mundo vai participar da bendita festa, mas houve apenas um mal-entendido. É a mesma ladainha de resolver esse “grande problema” e no final todo mundo se abraça (risos). Pô, tento ensinar as crianças através de uma história e as coisas tem que ter relevância. Coraline é um conto de fadas, essencialmente. Não precisamos dizer que há monstros por ali, pois, a essência humana garante que os monstros vão aparecer, mais cedo ou mais tarde. O que temos que contar é que esse monstro pode ser derrotado. Lembro da primeira versão de roteiro que Henry me apresentou, era fiel demais. Ele simplesmente havia transferido o livro para o filme e não funcionaria, eu sabia. Precisava de mais refinamento e de uma verdadeira adaptação. O livro não é um filme e ponto. Ele entendeu o processo.

As ampliações de personagens sugeridas por Selick – Bobinski e as atrizes inglesas – foram ‘banheiros na cozinha’?
De maneira alguma. Adorei o resultado, pois tudo está no livro, mas Henry ampliou e deu a vida necessária a cada um deles. Bobinski está no livro como Mr. Bobo e é romeno, não russo como no filme. Já as duas atrizes inglesas aposentadas dizem ser da escola shakeasperiana, mas tenho minhas dúvidas se não eram dançarinas de cabaré.

Há duas reações comuns sobre Coraline: gostei do livro, mas estou triste por meus filhos serem velhos demais para isso; e, gostei do livro, mas vou pensar duas vezes antes de mostrar para meus filhos. O filme seguirá esse caminho?
Acho que sim. Mas há uma terceira reação que pouca gente nota, pois não está presente nas críticas ou na internet: a reação das crianças. O que me fascinou em Coraline, como livro, foi notar adultos encarando como horror – acham absolutamente assustador – e crianças vivendo uma grande aventura, como se estivessem lendo dois livros totalmente diferentes. Muito adulto se assusta por conta de memórias reprimidas da infância, mas a garotada não tem nada reprimido ainda, então eles encaram de uma nova forma. Além disso, como adulto, você encara Coraline como a história de uma “criança em perigo” e esse é um dos gêneros literários mais assustadores possível, especialmente se você for um pai. Mas para crianças, é algo do tipo James Bond. Eles se identificam com Coraline e sabem que, no fim das contas, ela vai se dar bem. Adultos já ficam com o pé atrás, pois me conhecem e ficam na dúvida se algo terrível vai, ou não, acontecer. Não há dúvidas para as crianças e elas gostam de enfrentar algo grande e assustador. Parando para pensar, vencer algo trivial é coisa do Disney Channel e não leva a lugar nenhum.

Um dos elementos mais marcantes da sua obra é o forte simbolismo. Em Deuses Americanos temos um graveto que se transforma em lança e, em Coraline vemos botões representando um mundo bizarro e assustador. As histórias nascem ao redor dos símbolos ou eles são assimilados ao longo da criação?
Basicamente, todos esses símbolos são ferramentas que sempre estão à disposição do escritor. Agora, com os botões, estamos falando de algo muito esquisito para mim. Se alguém me desse uma máquina do tempo, garanto que antes de usá-la para zanzar por aí lutando contra vilões e alienígenas, eu voltaria 20 anos na minha vida para me dar um recado: ‘em algum ponto no próximo ano, você terá a idéia de escrever um livro chamado Coraline, que ela terá uma Outra Mãe e ela terá botões pretos no lugar de olhos. Quando acontecer, por favor, escreva quando e como foi, pois você vai passar o resto da vida falando sobre isso’ (gargalhadas). Nunca prestei atenção e realmente não achei que isso fosse se transformar num livro.

Morar em Minneapolis traz alguma inspiração especial?
Tirando idéias para histórias passadas no frio, não muita (risos). A melhor parte é morar longe de Los Angeles. Pense assim, se alguém quiser marcar uma reunião comigo ou discutir alguma idéia, precisa pagar US$ 5.000 para me trazer, colocar num hotel legal, dar boa comida e me levar de um lado para o outro. Você não imagina a quantidade de tempo que ganho evitando alguns aventureiros.

Neil Gaiman

Fábio M. Barreto

Fábio M. Barreto novelista de ficção, roteirista e diretor de cinema e TV. Atuou como criador de conteúdo multimídia, mentor literário e é escritor premiado e com vários bestsellers na Amazon. Criador do podcast "Gente Que Escreve" e da plataforma EscrevaSuaHistoria.net.
Atualmente, vive em Brasília com a família.

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3 Comments

  1. Confesso que só li um livro do Neil Gaiman até hoje, “Lugar Nenhum”. Mas daí já se vê que o cara é um grande autor. O filme Coraline também não consegui assistir ainda. Mas os temas de seus livros me atraem bastante. Quase todos estão não minha lista “preciso ler”, e vou realmente ler quando puder. Fora o filme, que assim que achar não-alugado na locadora, vou ver.

  2. […] o trabalho de Gaiman há mais de 10 anos. O resultado foi publicado na Sci-Fi News e aqui no SOS […]

  3. Li Coraline quando foi lançado no Brasil e confesso que a história me assustou na primeira leitura, Depois reli algumas vezes e em cada uma descobri alguma coisa nova (como em todos os livros de Neil Gaiman).

    O filme foi uma grata surpresa já que é bastante fiel ao livro e a animação é maravilhosa.

    A simpatia do autor eu já conhecia do tempo em que ele esteve em São Paulo autografando livros na Fnac. Minha filha conversou com ele e tem Belas Maldições com o autógrafo! *inveja dupla*!!

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