Modernizar um conto secular vai além da história da Alice de Tim Burton. Esse é apenas mais um capítulo envolvendo uma tendência recente para expandir universos clássicos estrelados por mulheres… e subvertê-los. Seja com Alice, Dorothy ou a Bruxa Má do Leste.

Por Fábio M. Barreto,
de Los Angeles

Uma Alice mais velha se vê frente a frente com a Rainha de Copas, que dominou o País das Maravilhas e iniciou um reinado de terror e opressão; sua missão é devolver a beleza e a alegria ao lugar que visitou na infância. O leitor desavisado pode entender essas linhas iniciais como o roteiro para o novo filme Alice no País das Maravilhas, dirigido por Tim Burton e escrito por Linda Woolverton, porém, é o argumento para uma produção de menor impacto mundial, mas igualmente bem-produzida e relevante no rol das adaptações de Lewis Carroll: Alice, minissérie produzida e exibida pelo canal a cabo Syfy. Mulher feita, instrutora de caratê e traumatizada pelo súbito desaparecimento do pai, essa Alice encontra um cenário urbano, deturpado e mais cheio de relações com o mundo real do que gostaria. É um novo momento para a heroína, cujo destino é causar a mudança e libertar. Entretanto, ela não é a única personagem literária envolvida nessa linha de raciocínio e adaptação. Tudo começou com uma famosa Bruxa…

Quando Wicked: The Life and Times of the Wicked Witch of the West foi lançado, em 1995, muito se ponderou sobre alguma das verdades absolutas dos clássicos infantis, especialmente seus vilões. Afinal de contas, restavam poucas dúvidas sobre a malevolência da Bruxa Má do Oeste, bem, pelo menos até o lançamento de Wicked. Longe da linguagem infantil, repleto de alegorias políticas, econômicas e sociais, o romance [que mais tarde foi transformado em musical de sucesso na Broadway] subverteu os conceitos definidos sobre a personagem, revelou suas verdadeiras motivações e a transformou em ídolo para parte dos grupos defensores dos animais. Os tempos são outros. Ninguém é bom ou mau simplesmente por que o autor assim o disse, em 1900. Os leitores mudaram, assim como a dinâmica do mundo.

Um resultado direto dessa tendência surgiu quando o Syfy [então ainda chamado de SciFi Channel] produziu a minissérie de sucesso: Tin Man. Os elementos estavam todos lá, menos o ambiente fantasioso da ambientação infantil do original L. Frank Baum. É um novo mundo, um novo Oz. Dorothy, ou melhor, a neta da personagem original se vê jogada num ambiente deprimente, sombrio e assustador. Não por simples cores, mas por personagens amargos e um governo autoritário. Interpretada por Zooey Deschannel, a nova Dorothy faz seus aliados clássicos (e conhece o Mágico, vivido por Richard Dryefus) e procura soluções para as mazelas que afetam o lugar. Nada é o que parece e tudo é surpreendente assim que termina a estrada de tijolos amarelos. Não há lugar para inocência ou dúvidas infantis, Dorothy enfrenta a morte a cada novo desafio. Sua função vai além da simples leitura da “valorização da mulher” e afeta o âmago de todos, uma vez que seus dilemas são universais.

“Se a fantasia tem uma função no mundo de hoje, é chamar atenção para problemas latentes, mas incomuns na mídia ou na agenda dos políticos”, comenta o ator Alan Cumming, em entrevista exclusiva ao SOS Hollywood; ele interpreta o Espantalho, ou melhor, Glitch, uma nova vertente imaginada para o personagem sem cérebro (sem memória, nesse caso). “Por vezes, apostar apenas no noticiário ou em um filme esporádico abordando tais temas não é o suficiente. Precisamos utilizar cada oportunidade; algumas decisões são irreversíveis no nosso mundo. Torná-las públicas é um direito, agir é um dever, mas aí não podemos fazer mais nada. O trabalho do ator tem limites”.

De acordo com Cumming, “o espectador disposto a enxergar apenas o óbvio seja numa alegoria clássica, seja numa dessas novas versões, opta pela postura da aceitação. Não creio que todos devam se tornar revolucionários, mas quando o simples ato de ter compaixão por alguém, ou mesmo um animal, pode fazer a diferença. Isso sem contar na relevância política que certas atitudes provocam”. Debate é o grande atributo nessa tendência, cujo aspecto comercial é inegável, mas a mera escolha por ambientações mais sombrias e próximas da realidade de cidades e países afetados por tragédias reforça sua atualidade.

Tudo isso é feito com respeito à importância dos valores familiares e também da amizade, presentes do original. Entretanto, não há nada que impeça tais conceitos de fazerem parte de uma vida mais politizada ou ativa. Aliás, pelo contrário, Tin Man incentiva essa prática, seja pela grande decisão de Dorothy ou pelo doloroso passado do Homem de Lata [o Tin Man do título], vivido por Neal McDonough.

Mais assustador, porém, é o País das Maravilhas encontrado pela Alice da minissérie de 2009. A estreante Caterina Scorsone visita a terra dos sonhos de Lewis Carroll cerca de 150 anos depois da história clássica; ela é uma reencarnação da personagem. Assim como sua protagonista, o argumento também renasceu e ressurgiu perante uma nova realidade mundial. Sem a existência de grandes governos opressores, uma vez que o Grande Irmão de Orwell não se concretizou, responder a outras ameaças se faz necessário e, quer dizer, versões dessa grande mazela: dependência virtual e irrelevância pessoal.

Cada vez mais afetados por uma sociedade vivendo sob o signo da celebridade e da falsidade realista da versão deturpada da obra de Orwell, anacronismos se fazem mais constantes e a massificação parece inevitável. Alice vê tais elementos presentes em seus encontros com o Cavaleiro Branco [Matt Frewer, que será visto nessa semana em Supernatural, interpretando o Cavaleiro do Apocalipse: Peste] e sua visita ao Cassino de Emoções, uma alegoria direta ao vício pela gratificação instantânea da Internet e, mais recentemente, das mídias sociais.

Exploração e ilusão são dois elementos fortemente presentes nessa versão. Os humanos são as Ostras [retratadas de maneira infantil pela animação da Walt Disney, por exemplo], seres explorados pela Rainha de Copas (Kathy Bates) e sua demanda não por cabeças, mas por emoções das quais é naturalmente incapaz de sentir. Os habitantes do País das Maravilhas não passam de ferramentas para que ela alcance seus objetivos, portanto, perdem suas cabeças no ato de seu nascimento, por serem despidos de qualquer chance de uma vida normal. E o Chapeleiro Maluco [numa brilhante interpretação de Andrew-Lee Potts] faz as vezes de facilitador, negociante, intermediador, vilão e bom-moço, de acordo com a maré. A síntese do sujeito moderno: disposto a sacrifícios para encontrar sua felicidade individual, mas como limites rasos e tão mutáveis quanto sua nova afinidade.

Muito pode ser explorado do original de Lewis Carroll, cujas estruturas e personagens servem, na verdade, como linha guia para infindáveis adaptações e aplicações, assim como as fórmulas matemáticas com as quais Carroll convivia: basta encontrar o contexto correto e aplicá-las. Felizmente, esses preceitos literários são mais flexíveis que a rigidez numérica. Porém, o aspecto sombrio anexado pelas leituras contemporâneas supera, e muito, o contexto assustador do original. Alice podia se ver diante de situações incompreensíveis, portanto, aterrorizantes, mas quando a Alice do SyFy se depara com vida e morte num mundo semi-destruído e, aparentemente, sem esperanças, o resultado é diferente. E sem todo aquele nonsense digno de tablóides sobre as implicações sexuais e pedófilas envolvendo Carroll e Alice Liddell.

O ser humano é sempre seu pior inimigo. Seja em nosso mundo, no País das Maravilhas ou na Terra de Oz, por vezes surgem mulheres capazes de abrir nossos olhos e, providas de sua sensibilidade afinada e carinho latente, transformam suas ações em tarefas muito mais transformadoras que a habitual força bruta masculina. Há muito que se aprender com tais exemplos e arquétipos, mas o aprendizado só é possível quando suas reais intenções e lições são compreendidas. E tal compreensão vai muito além de sexo, vínculo com a realidade ou período de inscrição histórica. Não é preciso estar diante de um surto psicodélico para vivenciar as maravilhas da imaginação.

Veja um vídeo dos bastidores de Alice:

Galeria de Imagens de Alice e Tin Man.

Fábio M. Barreto

Fábio M. Barreto novelista de ficção, roteirista e diretor de cinema e TV. Atuou como criador de conteúdo multimídia, mentor literário e é escritor premiado e com vários bestsellers na Amazon. Criador do podcast "Gente Que Escreve" e da plataforma EscrevaSuaHistoria.net.
Atualmente, vive em Brasília com a família.

Recomendado para você

2 Comments

  1. Não vejo problema em modernizar e atualizar determinados temas, o problema é reinventá-los sob a máscara da modernização e torná-los um produto sem identidade, apenas um nome fazendo essa ligação.
    Alice nos cinemas, por exemplo, é uma continuação e uma reinvenção ao mesmo tempo, mas o maior problema é que ali nós temos “Alice, de Tim Burton” e não “Alice, de Carroll, adaptada por Tim Burton e Woolverton”. Fúria de Titãs, por exemplo, comete o pecado de não modernizar, mas reescrever uma história de séculos – onde Hades não dá o elmo a Perseu, mas o combate e liberta o Kraken, que seria o monstro marinho de Poseidon. Onde Perseu não se interessa, não casa e não ama Andrômeda, onde o Pégaso não nasceu da Medusa, onde o escudo não foi presente dos deuses, mas veio da casca de um escorpião. Isso é um atentado contra essas histórias, porque joga no lixo um legado que sobreviveu no boca a boca e na literatura por séculos e é enterrado pela indústria cultural, como Benjamin já previa há 70, 80 anos.
    Para a geração atual, por exemplo, Perseu combateu Hades e nem deu bola para Andrômeda. Na era do visual, é o que fica, ainda mais para uma geração pouco afeita a leitura. Essa é a contribuição da nossa indústria “cultural” regida por dólares nos dias de hoje.

    Belo tema para se debater Fábio.
    Abraço

  2. Bons comentários charás! E esperava mais, muito mais da Alice de Tim Burton… típico filme desnecessário.

Comments are closed.