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É fácil lembrar da mistura maluca, e perigosa, de empolgação e desespero completo naquela manhã de Primavera enquanto seguia para o primeiro dia de trabalho. Mesmo que faltasse barba na cara, conhecimento suficiente, experiência de vida, uma namorada ou, o mais importante, certeza, caminhei decidido até as entranhas a fábrica gigantesca. Cheia de novos rostos e lugares. E, até aquele momento, de promessa por um futuro melhor. Ali seria criada a base para uma nova vida, afinal, trabalhar é a manifestação direta do maior diferencial humano no planeta. Podemos produzir, transformar, criar, realizar sonhos… ou aprofundar pesadelos.

Desde cedo, minha geração foi vacinada contra a “síndrome do vagabundo”. Ficar em casa sem fazer nada? Coisa de gente que não presta. Não ter uma carreira? A lepra social que assolaria o mundo. Logo, partindo da mensagem martelada nos ouvidos dos nossos pais e dos pais dos nossos pais, para quem viveu nos subúrbios, arrumar um emprego, ser útil para a sociedade e sustentar a família era fundamental. Veja bem, nada de seja bem-sucedido, transforme o mundo ou revolucione o modo de pensar! Nada! A jogada era fazer parte do tabuleiro e, como todo bom peão (ou massa de manobra, fica a critério do leitor), tombar na hora que fosse mais conveniente. De certa forma, hoje, isso é assustador!

Quantas pessoas já viveram vidas inteiras sem nenhuma aspiração, ou pior, sem terem oportunidade de fazer algo além daquilo que foram ensinadas a fazer ainda cedo? Frequentei aulas de religião em dois bairros completamente diferentes – um no subúrbio outro numa área nobre – e foi ali que recebi a primeira dica disso tudo. No bairro pobre, as crianças eram incentivadas a fazer sua parte e cumprir aquele ritual descrito acima. No bairro rico, a história era outra. Parecia até que a Bíblia era outra. Lidere com consciência, pense, inove, saiba respeitar quem está abaixo de você. A mensagem não era de toda ruim, claro, mas o cabresto estava lá, sempre presente, definindo posições sociais e limitando sonhos.

E lá estava eu, sonhando, deslumbrado com os corredores que levariam ao início da vida profissional. Conheci os rostos, os segredos e nunca cheguei perto das felicidades. O trabalho não era lugar para alegria. Você precisava ser sério, chegar no horário, fazer o que o chefe mandar e estar pronto para a mesma coisa no dia seguinte. Então percebi os rostos, novos e velhos. Conformados. Alguns passaram a vida toda naqueles corredores onde a luz do sol nunca chegava. Outros aspiravam ao mesmo destino. Tudo em nome de uma carreira. Da certeza do salário, mesmo que mirrado, no fim do mês.

Não gostava de Ayrton Senna, mas devo muito a ele. Quando morreu, o cortejo fúnebre que partiu de Guarulhos passou pela Marginal Tiete, ao lado de onde trabalhava, e fui prestar homenagem. Estava ali um sujeito que, embora de família rica, significava tanto para os que nada tinham. Foram 15 minutos até tudo terminar. Lembro ter derramado algumas lágrimas. Inicialmente, por ele. No fim daquele dia, choraria por outras razões. Todo mundo voltou ao escritório para encontrar um chefe de Departamento Pessoal deixando claro que aqueles minutos seriam descontados do pagamento. Foi o começo do fim. Se sonhar era impossível e honrar era passível de punição, tudo ficou claro.

Ficaria contente em envelhecer naqueles cubículos burocráticos ou tentaria algo tão impensável quanto as curvas e a velocidade de Senna? Hoje, a resposta parece óbvia. À época, não foi. Foi duro. Grandes decisões requerem maturidade e um pouco de adivinhação, pois elas mudam tudo e, sem um plano, não servem de nada. Com menos de 20 anos, não tinha nenhuma das duas coisas. O desejo era a única arma. Sabia que aquilo seria pouco, que a vida deveria ser mais que uma simples tarefa burocrática sob a chibata de chefes autoritários, malucos e arcaicos.

Qual a opção? Construir sonhos, descobrir habilidades e desabrochar contra tudo e todos. E não é exagero. As escolas são feitas para definir as faixas sociais. O cursinho era, na maioria das vezes, reforço para o aluno rico com aspirações maiores que seu conhecimento. As empresas sempre tiveram suas preferências de acordo com a faculdade, desde os estagiários. Trabalhar com jornalismo sem ter se formado por Cásper, PUC ou ECA era um purgatório constante, responsável por aqueles comentários simpáticos do tipo “tadinho, fez tal faculdade; vamos ver se consegue ser alguém na vida”.
Não escolhi as palavras pela glória (que o jornalismo nunca teve) ou pelo dinheiro (que o jornalismo nunca trará), mas pelas maravilhas que os escritos de outras pessoas fizeram por mim. Viajei a tantos planetas, culturas e Eras quanto descobri personas, sonhos e pesadelos com os livros, quadrinhos e filmes que assisti. Escolhi fazer algo bom, que me desse orgulho de fazer e que durasse para sempre.

Mas a eternidade pode ter vida curta quando o poder da adivinhação lhe falta completamente. Veio a revolução das comunicações e, hoje, tento imaginar o que aquele garoto empolgado com o primeiro dia de trabalho pensaria se soubesse que embarcaria no maior barco furado da Era Moderna. Foram 16 anos de jornalismo, desde os primeiros meses da faculdade não-famosa; 6 deles ao lado das estrelas, dos criadores de histórias, dos comandantes dos grandes filmes e empreitadas criativas do cinema. E, pelo jeito, ela chegou ao fim sem muito alarde, mas com grandes consequências.

Vivo o mesmo dilema que muitos amigos da área. Para onde o jornalismo foi? Provavelmente, a lugar nenhum. Está do mesmo jeito que sempre esteve. O que mudou foi o mundo à sua volta. Por anos, nossa classe deteve o controle da informação. Quer saber algo? Leia o jornal ou assista ao noticiário! Simples assim. Isso é coisa do passado. A informação mudou de mãos, está em todas as mãos. A informação foi pulverizada e arrancada de nossas mãos pela instantaneidade e desejo da própria fonte de ser a transmissora. O monopólio se quebrou. A maior mudança, porém, foi no interesse do público e na inabilidade de editores e repórteres de se manterem interessantes. O publisher pode mandar cobrir algum assunto irrelevante ou publicar a foto-legenda da sub-celebridade. O editor e o repórter decidem acatar, ou não. Faltou um pouco do desejo de luta de quem peitou a ditadura, faltou um pouco da coragem de discordar, faltou toda a capacidade de tentar vencer pela criatividade.

Jogamos a toalha. Os blogueiros pegaram o bonde andando, fizeram uma lambança danada, mas, sempre, tentaram ser criativos. A geração deles é outra, pode ter sigo mal direcionada a acreditar que tudo que fazem pode ser lindo e maravilhoso, mas essa mensagem é mil vezes melhor que a do cabresto, a da conformação social. Hoje, eles proliferam, geram lucro, fazem fortunas e provam por A+B que a nossa fórmula se tornou errada com o passar dos anos. O curioso é usar “eles” e “nós”. No fim das contas, existe apenas um: aquele dedicado à informação, a transmití-la, aquele que escreve por amor, ou por opção, mas, ainda assim, escreve. Claro que essa foi a base da idiolatria que assola todos os mercados; com a informação sem valor, o formato e o rosto, ou opinião, atrelado a ela é o que faz a diferença. O jornalista passou décadas tentando ser o transmissor neutro do fato; o blogueiro o tornou pessoal e, com isso, voltou a falar direto com quem consome. Sinal dos tempos e sabe-se lá como essa situação estará daqui 20 anos. Milhares de empresas lucrativas falando com um número cada vez mais segmentado de consumidores ou milhares de facetas de uma mesma megacorporação fazendo apenas aquilo que o mercado pede, sem pensar nas consequências?

O jornalismo continua no mesmo lugar. A mídia digital continua se transformando. E todo mundo continua tentando se virar. E penso se a eterna necessidade pela transformação do trabalho criativo é melhor que a estagnação garantida do emprego no escritório? Só sei que, enquanto escrevo aqui, aquele mesmo chefe, que descontou os minutos dedicados ao herói, está sentado na mesma cadeira, no mesmo endereço, 30 quilos mais gordo, 20 anos mais velho, tomando a mesma cerveja no fim de semana. Ele só não está mais descontando minutos. Pois não temos mais heróis.

Estamos presos numa eterna revolução de personas e ideias. Lutando pela atenção de consumidores e investidores. Tentando antecipar o amanhã e apenas sobrevivendo ao presente, que continua sendo um eterno vir a ser. Sabemos da vida que deixamos para trás, mas qualquer passo é tão incerto quanto o de Indiana Jones diante do precipício. No máximo, podemos torcer para que a próxima guinada não aconteça no meio da travessia.

Mas nada disso vai me impedir de escrever e desistir de informar e transformar. O cinema e a literatura estão aí para isso!

Fábio M. Barreto

Fábio M. Barreto novelista de ficção, roteirista e diretor de cinema e TV. Atuou como criador de conteúdo multimídia, mentor literário e é escritor premiado e com vários bestsellers na Amazon. Criador do podcast "Gente Que Escreve" e da plataforma EscrevaSuaHistoria.net.
Atualmente, vive em Brasília com a família.

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2 Comments

  1. Parabéns pelo texto, me identifiquei muito com o que escreveu e também sou jornalista e me sintoconfuso com toda essa mudança e acredito que só continuando escrevendo, pondo as minhas ideias no papel ou na tela, para não enlouquecer e se entregar a rotina sem graça e sem esperança…

    1. há esperança! comecei uma campanha no Patreon justamente para financiar a esperança! =D

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