A noite fresca avança sem pressa.

A luz fraca ilumina a sala de leitura. Sombras estáticas compõem o cenário marcado pelos móveis escuros, de madeira maciça e estofado de couro lustroso. Não venta e apenas algumas folhas da árvore perto da grande janela se movem quando a brisa passa.

O som da velha Remington ecoa pelo ambiente, lutando contra o silêncio e a calma tão comuns àquele lugar. Toc. Toc. Toc. Toc. Uma palavra. Toc. Toc. Toc. Mais uma. E as folhas de sulfite ganham nova forma, tatuadas ao bel- prazer dos caracteres de chumbo. A batida é forte, a fita de duas cores com a camada preta já gasta sobe, o papel cumpre sua função. Toc. Toc. To…

O pensamento é interrompido. Você dorme no divã ao lado. Penso em seus sonhos, como foi seu dia, se gostou do jantar que preparei. A boca entreaberta permite que palavras não ditas ganhem o ar. Seus lábios se movem, mas sem som. Algo importante acontece em seus devaneios.

Toc. Toc. Toc. Tic. Toc. Toc. A datilografia continua. A caneca de chocolate quente com licor irlandês e biscoitos espalham seu aroma adocicado e reconfortante no canto onde está a escrivaninha. Cada uma de suas gavetinhas contém uma história, uma função, um momento em que elas deixaram de ser peças inanimadas para inspirar algumas daquelas letras. Toc. Toc. Uma interrupção. Como descrever a maçaneta daquela porta tão importante na trama? Os dedos tamborilam e os olhos deslizam pelo cenário e fixam-se no pequeno puxador da gaveta no topo direito superior. O puxador parece aumentar, ganha proporções de gente grande, ali não existe mais uma gaveta. Agora é uma porta e ela leva à solução da história. Seus detalhes deixam a simples realidade de um pedaço de mobília para ganhar a eternidade. Toc. Toc.

O papel cumpre sua função. As últimas batidas de algo que começou há anos. Milhares de páginas tatuadas pela eternidade. Borrões em algumas delas, outro grande número de folhas amassadas no cesto de lixo. Não há espaço para erro ou desleixo. Toc. Tic. Toc. Toc. Toc. Os dedos estão cansados. Você continua dormindo.

Uma das bonequinhas se move na grande poltrona almofadada. Ninguém percebe. Ela se move novamente e, em instantes, um cachorro de pelúcia se junta a ela. Ambos olham para você. Seus olhos de acrílico eternamente fixos contemplam seu sonho, pensativos, profundos, imutáveis. Eles devem ter trocado confidências sobre o que viam, coisa de bichos de pelúcia, os melhores companheiros. Sempre dispostos, sempre presentes. Para rir e se molhar, voar pelo ar ou perder um braço – ou uma asa, no caso das fadas – sempre que necessário. Mas sem nunca reclamar. O som da máquina de escrever fica mais leve. Tec. Tec. Tic. Tec…

Um gole de chocolate quente anima o espírito. Uma recompensa merecida. Falta um parágrafo. O gosto do licor provoca lembranças boêmias, das noites sem dormir – sempre escrevendo – e dos poemas imaginados durante as perambulações na vila. Lembranças. Muito tempo atrás. Antes de você. Antes do peixe-palhaço que, agora, compartilhava a poltrona com o pug maltrapilho, a bonequinha e uma caixa misteriosa. Perplexidade. Por alguma razão, o relógio entra no campo de visão. É madrugada. O olhar se volta para você.

Você ainda dorme.

Os dedos deslizam pelas teclas da Remington com leveza e deleite. A pilha de páginas ao lado ganha a importância de um troféu. Um grande prêmio, como se todas aquelas folhas fossem uma preparação para aquelas últimas linhas. Tec. Tec. Tic. Tec… enfim, a conclusão. “Ele tomou a decisão que mudaria o mundo”. Toc. Ponto Final.
Girar o controle de pressão da folha para retirá-la da máquina foi instintivo. Era a última. A página suspensa em frente aos olhos, como a um filho recém-nascido. Um respiro profundo valoriza o momento. A cadeira de couro marrom rodopia na sua direção para apresentar o rebento, mesmo que de forma silenciosa. O movimento chamou a atenção para a poltrona com seus ocupantes misteriosos. vazia. Como se nada tivesse acontecido. Um sonho acordado talvez? O giro se completou.

Você ainda dorme, mas não está mais sozinha. O cachorro, o peixe, a fada, um par de sapatos, uma boneca gigante e a tal caixa misteriosa ficam ao seu redor. Um cenário improvável. Licor demais? Sono atrasado? Devâneio provocado pela felicidade do momento? E foi quando ela apareceu.

A pequenina surge em meio aos brinquedos passeadores. Ela a idolatra, contempla e falava baixo com seus amigos inanimados sem ligar para o horário ou para a escuridão. Olha para mim. Seu sorriso angelical cruza a sala. Eu sei o que vai acontecer. Você não.

“MAMÃAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAEEEEEEEEEEEE!”

A noite é uma criança.

Fábio M. Barreto

Fábio M. Barreto novelista de ficção, roteirista e diretor de cinema e TV. Atuou como criador de conteúdo multimídia, mentor literário e é escritor premiado e com vários bestsellers na Amazon. Criador do podcast "Gente Que Escreve" e da plataforma EscrevaSuaHistoria.net.
Atualmente, vive em Brasília com a família.

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9 Comments

  1. Grande Barretão,

    Me pergunto se você é um jornalista que enveredou na literatura ou um escritor que enveredou no jornalismo. Ótimo texto, continue nos presenteando com seu ótimo trabalho.

    May the force be with you!

  2. Que é isso, Barretão?
    Sabia que você era bom, mas tudo isso???????????
    Que texto maravilhoso. Subjetivo, introspectivo e bem família. Não é?
    Um show de conto. Gostei. E pode continuar que você está no caminho certo.

  3. Texto descritivo interessante e intrigante. Muita coisa nas entrelinhas… Onde fica essa vila? Se é que ela existe ou é uma mistura de vários lugares? Nessa sua fase paizão a noite é realmente uma criança, em seu sentido literal. Orgulhe-se. Abs.

  4. Fazer chorar não vale, principalmente quando as entrelinhas falam tão alto.

    Lindo conto, parabéns!

    E tenha certeza do sucesso, você o merece ^_^

    Beijo

  5. XARÁ, parabéns pelo texto, realmente um trabalho muitíssimo interessante.
    Torço para que venham outros contos desse escritor que já provou (e prova a cada texto) que possui talento e imaginação de sobra!
    Saudações,

  6. @ Sonâmbulolistatístico
    Vai saber… acho que tem um pouco de tudo, mas sou jornalista por formação. Quem sabe um dia não cruzo a fronteira. 😉

  7. Caracas, Barretão, agora você mandou bem! Muito bem mesmo!

    Dá para ouvir o som da Remington durante a leitura. Sensacional.

  8. Eu também adorei, e já te disse isso. Também gostei da parte do barulho Remington, e como se fosse real!

    Abraços..

  9. Fábio:

    Muito bom mesmo!

    Enxuto, repleto de implicações nas entrelinhas, nuances do que pode ou não ser fantástico.

    Um que de Stephen King em sua melhor forma.

    Parabéns! Keep writing!!!
    Gerson.

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