Quatro anos depois de seu lançamento, A Mão que Cria, de Octavio Aragão, começa a ganhar traços de marco de gênero e aspira ao Olímpo dos clássicos nacionais! Em texto pessoal, revelo alguns segredos e pensamentos envolvidos na produção desse livro cheio de zumbis, homens-peixe e personagens da literatura mundial!

por Fábio M. Barreto, editor especial na Lemúria

Um braço misterioso desceu na Catedral de Notre Dame e alguns homens morreram antes de um duelo épico entre a Criatura de Frankenstein e o Aquaman, mas era só o preâmbulo para a invasão dos zumbis, da França mecanizada presidida por Júlio Verne e duas Guerras Mundiais marcadas por conflitos entre homens-golfinho, criados pelos conceitos do Dr. Moreau e os desmortos da Alemanha. Quanta coisa misturada, não? Bem, decidi publicar A Mão que Cria quando o braço desceu e não precisei passar do segundo parágrafo para ter certeza da impressão inicial. Era meio de 2006, minha esposa já estava grávida e eu acabava de iniciar um período curto, mas intenso, de trabalho na Editora Mercuryo, em São Paulo. Recebi um pedido idealista – que mais tarde se mostraria essencialmente desesperado – por novas idéias, novos temas, novos autores para uma editora dependente da obra de J.J.Benitez. A primeira escolha foi imediata e só informei a Gerson Lodi-Ribeiro que Outros Brasis seria, finalmente, publicado na pátria mãe. A segunda, da qual gosto de me considerar um pouco responsável, foi A Mão Que Cria, de Octavio Aragão. Um telefonema, algumas linhas de texto e, naquele momento, minha era a mão criadora. À época, preocupei-me com o presente e arrisquei classificar o livro como “a primeira ficção alternativa brasileira”, alcunha que lhe é de direito, mas não fiz nenhum exercício de futurologia e mesmo que tivesse feito, não imaginaria sua relevância para as bases do que hoje conhecemos como steampunk e toda essa zumbizada na literatura fantástica brasileira. Quatro anos e meio depois de meu primeiro contato com a proposta de Aragão, revisitei a obra e, de maneira assustadora, pude constatar que, na verdade, nossa maior realização foi a gênese de um admirável mundo novo, do qual todos podem, e devem usufruir, seguindo os preceitos mais que definidos pelo autor em sua outra criação, a Intempol. Pode ter sido fruto de um rompante de romantismo em prol da FC, mas resultou num livro fundamental!

Sou suspeito para falar? Possivelmente, mas meu senso crítico costuma jogar contra e elevar os padrões aceitáveis em termos de leituras ou filmes. Basta ler qualquer análise publicada nos veículos com os quais me correspondo, não há o que esconder. E confesso que temia pelo efeito dos anos e da maior experiência quando reiniciasse a leitura de A Mão que Cria, mas o primeiro parágrafo fez as vezes da máquina de H.G. Wells para resgatar não a lembrança da história – essa nunca desapareceu -, mas a empolgação desperta pelo primeiro contato. Precisava ler. Queria ler. Não conseguia parar de ler. A cada novo personagem a curiosidade quase adolescente despertava para situá-lo no mundo real ou no literário, suas referências, suas motivações e o modo como Octavio (chamá-lo pelo sobrenome, Aragão, soa estranho num texto tão pessoal) costurou tudo isso de forma alucinante. Você está certo, meu caro leitor, se considera tudo isso um discurso de fanboy, mas o que é o editor se não um fanboy com meios e crença suficiente para acreditar que uma obra merece ser compartilhada e tem fôlego suficiente para dar lucro nas livrarias? Aliás, é preciso acreditar mais do que o normal para assumir esse tipo de responsabilidade.

Misturar elementos fictícios com realidade é obrigatoriedade no gênero da Ficção Alternativa, mas Octavio merece os louros por sua criação mais brutal: os desmortos. Todo mundo tem alguma idéia do que sejam zumbis – seja algo ligado ao vodu ou a imagem mais moderninha, do zumbi popular de The Walking Dead – e vincular esse não-ser tão vinculado à imagem de George Romero foi algo estarrecedor, ainda mais quando o “paciente zero” se tratava da Criatura de Frankenstein. Muitos autores que se arriscam com o tema queimam muitos neurônios para encontrar, normalmente na biologia, explicações plausíveis para a infestação zumbi. A Mão que Cria já apresentava uma nova proposta para o gênero lá atrás, numa mescla de influência alienígena com conceitos deturpados de uma criatura amargurada e abandonada. Se zumbi é sinônimo de vida sem ordem e desestruturação, os desmortos de Octavio já nasceram mais avançados, como o princípio de uma sociedade sedenta e sem dor. O caos dos filmes, gibis e séries de TV é básico. O Ariano – também conhecido com a Criatura – é a pós-graduação nas possibilidades desse tema.

Sempre mantive uma referência velada de William Forrester à relação que Octávio Aragão tem com os autores de quem empresta idéias e personagens. Tão fictício quanto o cenário de A Mão que Cria, Forrester permite que um pupilo use algumas de suas palavras e as transforme em algo seu. Próprio. Diferente. Nunca se abre a mesma porta, ou se vira a mesma página. Octávio fez o que todo autor de ficção científica tem obrigação informal – afinal, inserir obrigações estruturais é paradoxal por natureza – pelo caráter inovador e exploratório do gênero: deixou uma idéia se construir e a explorou. O zumbi como condição social e não como pestilência inexplicável permite muito mais criatividade, especialmente quando seu patriarca é um gigante deformado extremamente intelectualizado e com o coração partido. Penso em The Walking Dead e nos livros sobre o assunto sem encontrar repentes de criatividade no senso estrito da palavra. Há releituras, novas roupagens ou linguagens servindo para reapresentar um mesmo personagem. Todo mundo pensa em como, e se, os sobreviventes vão se safar; Octavio lhes deu uma nova origem. Uma opção de existência, uma continuidade alternativa.

Curioso falar de origem num livro cuja própria origem está espalhada por séculos de literatura. Cada nova esquina desbravada pelo estilo empolgante e ininterrupto de A Mão que Cria abastece a imaginação que acelera a todo vapor. Por falar nisso, finalmente, o Brasil vive o levante do SteamPunk, com diversos autores explorando o mundo retrô alimentado pela tecnologia robusta das máquinas à base de motores a gás, e mesmo nisso Octavio foi pioneiro. Seguindo os passos do mestre Verne, cuja influência como cientista teria possivelmente despertado um gigantesco renascimento a vapor na Europa pré-Primeira Guerra, o romance estabelece uma boa base para o visual rebuscado condizente com os cenários do gênero assim como suas máquinas e armamentos. Pensar no Celacanto – o opressivo submarino em forma de castelo – com quem o Nautilus trava combate ou a parafernália usada para tentar conter os desmortos na embaixada da Lemúria remete aos primórdios de uma identidade visual inevitavelmente herdada da literatura estrangeira que há anos explora o suas possibilidades, mas se apropriando dos conceitos com descrições espartanas e efetivas.

Cada autor tem imaginado o seu mundo repleto de máquinas a vapor, engenhocas miraculosas e visual antigo, batalhas entre aeronaves e zeppelins, grandes realizações de uma cultura que nunca existiu. Isso sempre me maravilhou na FC, poder imaginar tanto em tão pouco espaço de tempo. E daí que 2001 errou em sua previsão? Nada muda o impacto da sugestão de Arthur C. Clarke. O steampunk preserva o sentimento da “saudade de algo que não vivemos”, com sua classe embutida e cafonice visual obrigatória. É no exagero que está o segredo e tem coisa mais exagerada que um colosso submarino com torres móveis, armamento pesado, mísseis tripulados e um bando de zumbis, ou futuros desmortos, como tripulação? Em tempo, em momento algum quero forjar uma imagem falsa de que A Mão que Cria seja uma bíblia do steampunk ou dos zumbis, mas, como co-responsável, devo ressaltar sua importância e, especialmente, seu arrojo num momento em que os autores nacionais ainda não haviam se embebedado nos vapores fumegantes ou no diesel corrompido.

Se dele é a mão que cria, nossa é a mão que vira a página. E, deuses, como não parei de virá-las durante essa releitura que, de fato, foram duas em seqüência. Arrisco um palpite: tudo por causa de tantos desdobramentos espontâneos de idéias ali reunidas num balaio de gato literário, criativo e aterrorizante para bichos grilo amantes de golfinhos. E como ninguém mais o fará, decreto aqui: A Mão que Cria é um clássico – no mínimo, uma obra seminal de uma variável do gênero –, um caixa de pandora pronta a ser aberta por quem se atrever. Considerar apenas unanimidade como fator determinante nesse caso não se aplica, pois vivemos uma transição tanto de leitores quanto de autores. Há muita gente desgostosa em relação à obra e bons argumentos e criticam, entretanto, foram gerados a partir de um livro capaz de provocar e ousar quando nenhum outro teve a coragem. E isso não é surto de editor não, faço uso das palavras de Gilberto Schoereder, pesquisador do gênero, que considera esse “um livro que não pode deixar de ser lido, porque de fato traz um novo tipo de proposta para a FC nacional, e com muita qualidade”. Não sei bem se é o devaneio do vapor ou a revisita à Lemúria e às mazelas da família McKenzie, mas a chegada de 2011 tem cheiro de peixe com feijoada, de guerra retrô nos céus, tem cheiro de dor e punição, afinal, dele também é a Mão que Pune.

Fábio M. Barreto

Fábio M. Barreto novelista de ficção, roteirista e diretor de cinema e TV. Atuou como criador de conteúdo multimídia, mentor literário e é escritor premiado e com vários bestsellers na Amazon. Criador do podcast "Gente Que Escreve" e da plataforma EscrevaSuaHistoria.net.
Atualmente, vive em Brasília com a família.

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1 Comment

  1. Eu amei esse livro desde as primeiras linhas.

    Devorei as páginas com uma fome impressionante, querendo e não querendo que o livro chegasse ao fim.

    Adorei seu texto, parabéns.

    E parabéns ao Octávio por nos presentear com essa obra impressionante.

    E fico aqui, roendo as unhas aguardando por A Mão Que Pune.

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