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Dentro de Uma Mente Divertida

Uma das memórias mais curiosas da minha juventude no mundo dos quadrinhos é Uatu, o Vigia ou Observador – dependendo da tradução. Numa das melhores histórias envolvendo o rei do “E se…”, os X-Men peitaram Drácula e, bem, perderam. O resultado foi Wolverine transformando-se no vampiro mais malévolo e sangue-ruim do universo. Esse conceito do “e se…” pode, ao mesmo tempo, ser uma muleta narrativa ou ficar muito legal, dependendo do direcionamento. A pergunta que o personagem levanta é uma das mais cruciais na vida de muita gente, afinal, quais seriam as alternativas para nossos atos e decisões? Como o futuro se comportaria se tal coisa funcionasse de outra maneira? Bem, é exatamente isso que me leva a Divertida Mente (Inside Out), nova animação da Pixar, ou melhor, a todos os filmes do estúdio. Afinal, se pararmos para pensar, “e se…” ou “como seria?” são as duas perguntas fundamentais de toda a filmografia da companhia mais criativa, bem-sucedida e transformadora do entretenimento nesse século.

Procurando Nemo, Toy Story, Carros, Wall-E e, bem, todos os demais, entram nessa discussão, porém de outra forma. Em vez do básico “e se” provocar uma nova situação, ou ponto de vista, a Pixar muda o ponto de vista da narrativa humana e utiliza elementos não-humanos para, inicialmente, suavizar a discussão e conseguir chegar mais fundo do que muitos filmes em live action. Ou seja, a estratégia da Pixar permite que seus roteiros sejam aceitos mais facilmente e façam muito mais estrago (no bom sentido). Por muito tempo, a Disney antropomorfizou animais e objetos em suas histórias, porém, o momento narrativo não estava tão evoluído e os personagens não passavam de simulacros de contrapartes humanas. Eram fruto de magia ou fantasia, portanto, sempre lembrando o espectador de que não existiam, que nunca deixariam de ser arquétipos. A Bela e a Fera que o diga. Por sorte, timing e competência, a Pixar pode dar um passo à frente e por sempre servir ao enredo, o estúdio nos fez sentir, torcer, respeitar e temer. Pois, acima de tudo, aquelas histórias são profundas (especialmente em Nemo… ok, não resisti!) e relevantes. Na Pixar, eles ganham tons de realidade.

Mesmo quando o ambiente é absurdamente inverossímil e maluco, como em Divertida Mente. “Como nosso cérebro encararia os grandes traumas da vida se fosse habitado por sentimentos, em vez de sinapses e massa cinzenta?” A resposta poderia ser uma catástrofe completa, caso estivesse nas mãos de cineastas menos criativos – ou com menos dinheiro, sejamos justos. Entretanto, a Pixar criou um tratado psicológico, comportamental e emocional sobre algo universal: a mente.

A história criada por Peter Docter, uma das mentes mais prolíficas e fundamentais da Pixar, pode ter sido originada pela tentativa de compreender o estado de espírito da filha – e concordo plenamente com ele, faltava uma ferramenta! –, mas ultrapassou as barreiras da simples frustração/esforço paterno. Divertida Mente permite um debate inédito e instantâneo: qual emoção comanda sua mente, portanto, sua vida? Se antes, as emoções integravam personagens (Woody com a inveja, Marlin com o Medo, Sr. Incrível com a melancolia) e só existiam por conta de seus interlocutores, agora elas conversam diretamente com o público.

E tudo isso diz respeito ao principal elemento buscado por roteiristas: conexão. Muita gente pergunta sobre o que transforma um roteiro em algo relevante e inesquecível e essa é a resposta. A capacidade da obra se conectar ao público, fazê-lo pensar no assunto – sem ser maçante ou tedioso, simplesmente pensar – e gerar envolvimento é chave. No caso de Divertida Mente, não é preciso ter filhos, ter passado por traumas ou ser apaixonado por seus brinquedos de infância, basta apenas ter vivido. Todo mundo tem medo, paixão, nojo, raiva e por aí vai. O que muda é a intensidade e o modo como lidamos com tudo isso.

Logo, Divertida Mente serve como a maior experiência catártica coletiva promovida na história do cinema. É como se milhões de pessoas visitassem o psicólogo ao mesmo tempo, pensassem em suas decisões e consequências, memórias e esperanças, rumos e desvios. É mais um exemplo da animação extrapolando barreiras, aproveitando-se da natureza lúdica da técnica e mostrar maturidade. A Pixar normalmente não brinca em serviço e, a despeito dos obstinados pelo “fracasso do estúdio”, ainda não escorregou na casca da banana, pelo menos no que diz respeito aos títulos originais, e esse novo título é mais uma grande realização em sua história – agora, voltando a trabalhar sozinha, sem envolvimento da Disney, que só cuida da distribuição. É nessas horas que o lema da Pixar – “História Acima de Tudo” – se mostra cada vez mais presente.

Bing Bong

Siga aquela Memória!

Num paralelo interessante com Alice no País das Maravilhas, a vida da pequena Riley muda absurdamente quando ela perde a estrutura construída durante a infância. Enquanto ela convive com os efeitos da mudança de cidade, solidão e uma tristeza absurda, que ainda não sabe como se expressar, no mundo real, acompanhamos a saga das pequenas partes que compõem Riley dentro de sua mente. Essa é a proposta do filme, um mergulho na toca do coelho, nos confins da sanidade e de uma tentativa de encontrar lógica nas reações de uma garotinha.

A cena da criação das emoções é lírica. O desenvolvimento da história é cativante, por vezes triste, mas cheio de significado. Deixando as piadas com a memória de lado – especialmente a sacada brilhante do uso do jingle musical que, no meu caso, é Under the Bridge, do Red Hot Chilli Peppers –, as descobertas permitidas pela jornada, o modo como lidamos com as memórias, inclusive a seleção do útil e inútil, e a relação com a infância são ótimas. Bing Bong, o amigo imaginário, brilha nesse momento, pois ele é a última lembrança de um momento em que tudo era possível, não haviam limites e a vida ainda não havia descoberto as regras sociais ou as imposições físicas e monetárias. Normalmente, vemos a representação dicotômica do diabinho e do anjinho aconselhando as pessoas. Bem, Bing Bong está acima de tudo isso, mostrando que sonhar é a única solução, que acreditar é a única realidade. Foi um dos personagens mais acertados da história, tanto por deixar o eixo principal das emoções, quanto por representar os sacrifícios que precisamos fazer quando crescemos. A maturidade cobra um preço alto demais e, na maioria das vezes, não percebemos, pois as maravilhas são rapidamente substituídas por preocupações e fracassos.

O conceito das ilhas de comportamento também é fantástico, permitindo mais exploração e, especialmente na mente dos mais novos, um parâmetro de compreensão para suas próprias decisões. Ver minha filha e uma amiga saírem do cinema discutindo esse assunto foi revelador, pois, com certeza, foi a primeira vez que ambas olhavam para dentro delas e tentavam encontrar alguma lógica naquilo tudo, sempre usando as próprias experiências como referência. Animações infantis gastam tempo demais tentando ensinar e dar exemplo, como diz o guru de roteiros Robert McKee (nessa conversa bem bacana com o querido Fábio Yabu), e esquecem de permitir a formação de caráter. Essa só acontece por meio de conscientização, questionamentos e compreensão. Não importa quantas lições de moral Meu Querido Pônei tenha dado, Ariel cresce muito mais quando assiste filmes da Pixar, do Estúdio Ghibli ou independentes como The Secret of Kells.

É uma questão meramente objetivo: desenhos de canais infantis são formuláicos, precisam nivelar por baixo e não podem correr riscos de ofender pais, seja por conteúdos que se diferenciem de suas crenças pessoais ou estilos de vida, logo, precisam ser neutros. As animações mais sérias não têm essas restrições e são criadas a partir da vida real, logo, têm outra base.

E isso leva a outro assunto importante. Ainda há quem diga que animações, no geral, ou desenhos animados, são coisas de criança. A plataforma já evoluiu tanto – técnica e narrativamente – que esse comentário beira a ignorância completa. A competição de alto nível disputada por Pixar (que ainda reina suprema lá no norte), DreamWorks (que coloca o pessoal de Glendale para ralar e criar trabalhos tão relevantes quanto sua concorrente de San Francisco) e a Disney (que só assiste o show de camarote, afinal, o império de Burbank vai muito bem e ainda é parceira da Pixar) mostra uma preocupação imensa com conteúdo, qualidade técnica, arte e, claro, efetividade comercial. Se tudo isso não bastasse, o simples fato de que as histórias das grandes animações são capazes de afetar tanto pais quanto filhos, adultos e crianças, gentes de todas as raças e credos, mostra a real importância dessa arte para o mundo moderno. Desmerecê-la, ou ignorá-la, não passa de um erro grosseiro.

Divertida Mente é tanto um marco quanto um convite. Transforma as relações entre público e cinema e mostra para inúmeras gerações que a imaginação é, realmente, o verdadeiro limite da criatividade humana. Dinheiro ajuda, mas nada se sustenta sem uma grande ideia. Afinal, o que acreditamos e fazemos está registrado para sempre em nossas ilhas fundamentais. Com uma boa base, podemos chegar até a lua e nem precisamos ser amigos imaginários para sonhar com isso!

Para ouvir mais sobre Divertida Mente, acompanhe a discussão no RapaduraCast.

Fábio M. Barreto

Fábio M. Barreto novelista de ficção, roteirista e diretor de cinema e TV. Atuou como criador de conteúdo multimídia, mentor literário e é escritor premiado e com vários bestsellers na Amazon. Criador do podcast "Gente Que Escreve" e da plataforma EscrevaSuaHistoria.net.
Atualmente, vive em Brasília com a família.

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