Nos princípios dos filmes de animação levados a sério, os técnicos e diretores enfrentaram um problema comum: o nível de realismo dos personagens computadorizados. Tentativas fracassadas, acertos parciais e, em alguns casos, apenas vislumbres de algo humano tomavam as telas. Os criadores mais engenhosos, e entendedores, perceberam que aquilo nunca passaria de um simulacro e deixaram essa busca de lado, voltando a preocupar-se nas histórias que, efetivamente, dão realidade e Humanidade à animação, quando a animação não era capaz de ser realista por conta própria. Embora Chappie, de Neill Blomkamp, seja uma mescla em motion capture com atores e cenários reais, ele mostra o amadurecimento desse pensamento e o refinamento do processo tanto narrativo quanto técnico, afinal, o que é, e o que representa, a Humanidade num filme de ficção científica?

A produção de ficção científica da última década foi numerosa, mas mais conhecida por suas falhas e choques culturais – repletos de desentendimentos e discussões sobre complexidade extrema (ou didatismo desnecessário para alguns em Interestellar, por exemplo) ou simplicidade e confusão em tela (como Prometheus). Esse tipo de julgamento existe por conta da expectativa. Há anos, esperamos por novos clássicos incontestes e pela redefinição do valor da Humanidade, tão bem trabalhados por Isaac Asimov, Arthur Clarke, Ian M. Banks, Douglas Adams e tantos outros autores, assim como diretores como Steven Spielberg, Ridley Scott (com Alien e Blade Runner), Stanley Kubrick e etc. Da geração atual, o vanguardismo e sensibilidade de Duncan Jones é indiscutível, que, mesmo errando um pouco (Source Code), ainda provoca e gera discussões, tendo a força do irreparável Lunar (2009) por trás de suas ideias mais ousadas. Em Lunar, um computador era o melhor amigo do homem que não era homem. A coisa que representava uma ideia, sem, claramente, poder ser aquilo que representava. Logo, dois autômatos – de diferentes fisiologias e conceitos – executando tarefas pré-programadas, num mundo estéril e descobrindo a vida por conta própria. E, no processo, definindo a própria Humanidade.

No mesmo ano, aliás, dez anos depois da última revolução, com The Matrix, Neill Blomkamp surpreendeu o mundo do cinema com Distrito 9, sua estética realista, envolvente e socialmente relevante, mesmo sendo ambientada na “incomum” África do Sul. Assim como em Lunar, Distrito 9 era uma história de transformação, de redefinição do que é ser humano, do que nos diferencia de outras raças e, acima de tudo, se isso é tão importante assim. Afinal, o mesmo ser humano pode escolher tentar salvar o mundo ou tornar-se um criminoso perturbado e sanguinário. A resposta parece sempre estar com o indivíduo, na consciência. Aquilo que nos faz diferente. Aquilo que Mary Shelley criou com tanto esmero e, assim como os mitos gregos, continua a pautar a discussão não apenas do gênero, mas também de filósofos e estudiosos mundo a fora.

“Maldito criador! Por que fez de mim um monstro tão hediondo que fizeste até tu mesmo virar o rosto em desgosto?”

“Meus sonhos eram todos meus; eram meu refúgio quando sentia-me irritado”, escreveu Mary Shelley, em Frankenstein, ao descrever o subconsciente do homem que não era homem, do simulacro, do repositório de esperanças e sonhos, que, prontamente foram transformados em pesadelos e tragédia. “Maldito criador! Por que fez de mim um monstro tão hediondo que fizeste até tu mesmo virar o rosto em desgosto?” A empolgação humana perante a possibilidade da criação, da perpetuação não só da espécie, como também do indivíduo e da alma, é tão grande quanto o medo provocado pelo eventual sucesso. Criamos vida constantemente, com filhos biológicos, mas, esses, são moldados aos poucos, durante um longo processo que proporciona o período de adaptação necessária não à criança, mas ao adulto, que se coloca na posição superior, como o mantenedor da informação. As criaturas da ficção, dotadas de memórias prévias ou de simulacros das mentes dos próprios criadores, surgem como entidades instantâneas, autônomas, dotadas de interesses, dúvidas e, claro, medos. Como lidar com um indivíduo novo, consciente e, inevitavelmente, decidido a continuar a viver? Um indivíduo com alma? “Vida, embora possa apenas ser a acumulação da angústia, me é cara e vou defende-la”. Pois o criador, anteriormente imbuído da capacidade e gênio criativo capaz de gerar vida, torna-se refém dos próprios medos, afinal, a imortalidade que tanto procuramos é assustadora e incompreensível. O criador, antes esperançoso, se vê obsoleto, logo, descartável.

Mas por que continuamos a busca, mesmo sabendo dessa verdade inexorável? Pois, assim como Eduardo Galeano coloca, a “utopia serve para caminharmos, mesmo sabendo que nunca a alcançaremos”. Fazemos pela ciência da existência finita da carne e o desejo pela imortalidade da mente, ou da alma. Alias, quando falo de alma, deixo de lado o metafísico e encaro a mescla de consciência, senso de individualidade, imperfeições e experiências que nos tornam únicos, logo, vivos, ou anima, se quiserem seguir a escola Junguiana. De fato, o objetivo não é criar algo novo, mas, sim replicarmos a nós mesmos. Mas, há um elemento em comum em todas essas histórias: a sociedade à nossa volta. Não importa o quão genial seja o cientista, ou sua invenção, o mundo exterior o receberá com reservas, preconceitos e, em muitos casos, violência e ojeriza. É o medo daquilo que é inacessível. Veja bem, não é uma questão de compreensão, afinal, muito do ódio vem da compreensão, pois é preciso se formar uma ideia a respeito de algo antes de rechaça-la; o problema aqui é acessibilidade. Dr. Frankenstein era o único capaz de criar a Criatura e ela era tão única quanto qualquer humano, tão única que ninguém mais poderia repetir o feito, logo, precisava ser destruída antes que sua maldade se espalhasse. O mesmo funciona em Lunar, pois o choque causado pela revelação da natureza de Sam Bell só é comparável à descoberta do seu prazo de validade. De certa forma, sua tragédia era maior ainda por estar aprisionado a um ciclo sem fim.

A dupla Neill Blomkamp e Teri Tatchell, de Distrito 9 e Chappie, desenvolve tudo isso no novo filme da Sony. Se a capacidade de Blomkamp foi colocada em cheque depois do fiasco conceitual, diretorial e emocional de Elysium, Chappie é um filme repleto de acertos que superam, e muito, seus eventuais deslizes. São camadas em cima de camadas, em cima de camadas e mais camadas, de compreensão, discussão, sentimento e deslumbres organizados de uma maneira que revitaliza a discussão levantada anteriormente: o que é Humanidade?

Dezenas de filmes abordaram inteligências artificiais, muitos deles as transformaram em vilãs imediatas, outras em almas tão caridosas quanto inverossímeis e inaceitáveis. Chappie responde a essa pergunta de forma simples e poderosa: Humanidade significa ter alma. Chappie tem alma. Ele é uma máquina por fora, mas dotado de uma consciência extrema e única. Assim como o grande Andrew Martin, de O Homem Bicentenário, invocado várias vezes pela atuação detalhista e envolvente de Sharlto Copley. Não sentir o legado de Robin Williams é praticamente impossível. Mas ele vai além.

Assim como tantas outras criações ultra-inteligentes lançadas no mundo selvagem da sociedade humana, Chappie aprende com lições duras, suga o que está à sua volta e aprende a sofrer. Não há senso utópico nenhum na obra de Blomkamp, como todo criador de FC que se preze (sou igualmente culpado desse crime), ele parece incapaz de ver a raça humana encontrar o equilíbrio sem algum evento cataclísmico ou mudança extrema. Nesse caso, porém, o drama é mais sútil, contido, íntimo. Chappie é um robô consciente, que recebe lições de seu criador, Deon (mais um bom trabalho de Dev Patel), ganha uma mãe improvável e cresce no meio de criminosos. A analogia à triste história de centenas de milhares de crianças no mundo todo, especialmente na África do Sul, é clara. Assim como a mensagem de esperança: se ensinado da maneira correta, todos tem uma chance. Idealismo? Pode ser, mas se até a Criatura de Frankenstein é digna de nossa piedade e esperança, por que não desejar o mesmo para outro membro da mesma espécie? O filme mostra o caminho, mas reconhece as dificuldades.

Não é simples dar vida, é menos simples ainda garantir que a vida criada siga um bom caminho. Tudo à volta influencia. Tudo transforma. Tudo altera os rumos idealistas imaginados no ato do nascimento de nossos filhos. E Chappie é isso, um filho perdido no mundo, forçado a tomar as próprias escolhas, descobrir a essência da própria alma e, no final, entender-se como indivíduo.

Chappie-trailer (1)

Esse talvez seja o grande desserviço que muitos filmes recentes prestam, tentar ignorar a busca pela Humanidade e transformar vilões em amalgamas do que tememos (qualquer vilão corporativo, policial corrupto, etc), heróis em poços de sofrimento eterno (George Martin, oi!?) ou deslumbrado pelas próprias ideologias messiânicas ou tresloucadas. Não há mais espaço para propor uma saída. Somos uma cultura cínica, atualmente condenada a viver na “área cinza” criada, e reforçada, como oposto obrigatório à dicotomia de décadas passadas. Possivelmente, a resposta está na área cinza da própria área cinza, onde volte a haver diferença entre bons, maus, indiferentes e desinteressados, sem que todos precisem, necessariamente, ser um pouco de tudo. Chappie escorrega justamente aí, o vilão de Distrito 9 era o sistema, facilmente odiável, sem rosto, algo que “precisa perder, para que o indivíduo se salve”. Em Chappie, Hugh Jackman ganhou um dos piores papeis da carreira e não passa de um lunático inconsequente (bem parecido com o vilão de Avatar), alias, Sigourney Weaver parece herdar o papel de Giovanni Ribisi no filme de James Cameron e fica desinteressante como executiva de negócios; um papel recorrente, e igualmente desnecessário, vazio e fraco, nos filmes de Blomkamp.

A alma de Chappie é tão poderosa que supera tudo isso. O roteiro coloca o espectador na torcida pelo robô imediatamente contra tudo e todos, inicialmente pela natureza infantil, mas, depois, pelo desejo de ver a continuidade daquela vida. De, de fato, torcer para algo de bom perseverar num mundo tão caótico e entregue à violência e miséria. O uso da Johanesburgo e seu cenário socioeconômico por Blomkamp é ótimo, acelera e informa a história e amplia o drama do protagonista. Essa lição deveria ser aprendida por muitos cineastas brasileiros, alias. O pano de fundo pode ser útil e tem mais usos do que a mera exposição da pobreza. Alias, Chappie conversa, e referencia, muito mais com o Robocop original que o filme de Padilha.

Numa das maiores dinâmicas de Chappie, Criador e Criatura medem forças, trocam de papéis, questionam-se, discordam, concordam, vivem. É uma troca intensa – e menos presente do que aparenta – e fundamental para compreender a grande pergunta e a validade a resposta. Tudo está inserido no mundo atual, com algumas liberdades tecnológicas, mas extremamente verossímil. A sociedade descrita existe, suas demandas são reais, seus personagens podem estar escondidos em qualquer reduto esquecido pela mídia e pela vida em algum lugar do mundo. Diferente de Elysium, no qual tudo perdeu o contexto, e a na catástrofe de José Padilha, Robocop. Alias, Chappie dá uma lição de cinema, direção, roteiro, edição e relevância ao diretor brasileiro que, no mesmo estúdio, com bom orçamento, foi incapaz de entregar um momento sequer de relevância a seu remake que já caiu no esquecimento. Chappie é tudo que Robocop deveria ter sido e mais um pouco.

Suas ligações clássicas são claras, assim como Wall-E, é extremamente humano, mas canalizado por uma máquina. O final é surpreendente, emocionante e de uma delicadeza tão fantástica que pode arrancar lágrimas. Pois, diferente de outras criaturas, Chappie nasceu, cresceu, aprendeu, errou, redimiu-se… viveu com intensidade. Como aceitar que algo tão belo, e puro, morra?

Pelo menos na Ficção Científica, Chappie será sempre eterno. Um clássico instantâneo.

Chappie estreia no Brasil em 16 de abril.

“Os trabalhos de homens geniais, não importa o quanto errôneos e obtusos, quase nunca falham em transformarem-se em avanços sólidos para a Humanidade”
– Mary Shelley, Frankenstein.

Fábio M. Barreto

Fábio M. Barreto novelista de ficção, roteirista e diretor de cinema e TV. Atuou como criador de conteúdo multimídia, mentor literário e é escritor premiado e com vários bestsellers na Amazon. Criador do podcast "Gente Que Escreve" e da plataforma EscrevaSuaHistoria.net.
Atualmente, vive em Brasília com a família.

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1 Comment

  1. A discussão sobre o que nos torna humanos é talvez a mais interessante questão que a FC pode tratar. Ansioso para assistir Chappie.

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